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Projeto de novo CPP foca em problemas imaginários e deixa de enfrentar os reais

Segundo amplamente divulgado pela mídia, em breve irá à votação no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 8045/2010, que traz um novo Código normativo em substituição ao atual Código de Processo Penal (CPP ou Decreto-Lei nº 3.689/41). Trata-se de uma janela de oportunidade. Embora leis não mudem realidades, elas são peças relevantes na engrenagem que move a sociedade rumo ao caos ou à ordem, ou ao desenvolvimento ou à estagnação. Daí que a iminência de um novo Código de Processo Penal traz consigo, sim, um fio de esperança quanto ao aprimoramento do sistema justiça criminal do Brasil, historicamente ineficiente e injusto.

Aliás, não é preciso ser especialista em Direito Penal para reconhecer essas duas graves deficiências do nosso sistema. De fato, uma justiça criminal que deixa de punir a maior parte dos crimes graves cometidos na sociedade em que ela vige é ineficiente, já que não realiza a função que justifica a sua própria existência, que é a de proteger os bens jurídicos essenciais à sociedade por meio da prevenção e da repreensão a crimes. É o caso do sistema criminal do Brasil, país em que, pela mais otimista das pesquisas, apenas 30% dos casos de homicídios nele praticados têm seus autores identificados e punidos, segundo levantamento feito pelo instituto Sou Da Paz (com dados de 2017). Na França e no Reino Unido, por exemplo, essas taxas chegam a 80% e 90%, respectivamente. Esses números dizem muito sobre o Brasil, especialmente tendo-se em conta que o homicídio é considerado o mais grave dos ilícitos penais e, portanto, é aquele que tende a receber as mais enérgicas reprimendas por parte do Estado. Além disso, considerando-se que o homicídio é um crime cuja prática, em geral, deixa vestígios e que, justamente por isso, é mais facilmente detectável pelas autoridades competentes, é preocupante perceber que, ainda assim, esse crime tenha uma taxa de detecção e punição tão baixa no Brasil.

Além disso, um sistema de justiça criminal que nas poucas vezes em que incide o faz quase sempre contra a mesma parcela da população, deixando a outra, também delinquente, escapar impune, é um sistema injusto. No Brasil, essa injustiça fica clara ao se conhecer o perfil de quem ocupa as suas prisões: 75% dos presos possuem no máximo o ensino fundamental completo (o que é considerado um indicador de baixa renda) e 61,7% deles são de cor/etnia negra ou parda, segundo o último levantamento feito pelo Infopen (com dados de 2017). É como se apenas a população pobre e negra delinquisse por aqui. Como isso, todos concordam, não é verdade, facilmente se percebe que a justiça criminal funciona de modo absolutamente seletivo no Brasil: ela é dura com os pobres e leniente com os ricos, simples assim. Mas as causas desse problema são complexas e perpassam todas as instâncias formais de controle existente no país, indo desde a criação das leis penal e processual penal até a sua efetiva aplicação contra determinadas pessoas por obra da Polícia, do Ministério Público, do Poder Judiciário e da administração penitenciária.

A seletividade do sistema de justiça penal brasileiro é tamanha que, embora o país tenha apenas um Código de Processo Penal, na prática parece existir um Código para ricos e outro Código completamente diverso para pobres, bem na linha do que afirma o sociólogo Claudio Beato, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), para quem “no Brasil, temos um Estado de Direito só para os ricos, que podem usar uma infinidade de recursos judiciais. Para o resto, temos a cadeia”.

Em meus quase 10 anos de atuação na área criminal percebi uma constrangedora desigualdade do tratamento conferido a pobres e ricos pelo sistema de justiça penal. Pude constatar que o processo penal que tenha como objeto crimes praticados pelos mais pobres tem mais chances de ser concluído com uma condenação transitada em julgado. Os réus desses processos em geral são presos, frequentemente antes mesmo de findo o processo, em cumprimento à medida cautelar privativa de liberdade. Mesmo que não terminem o processo presos, esses réus cumprem algum tipo de pena, ainda que pecuniária ou de prestação de serviços à sociedade. No extremo oposto, os processos penais que tenham como réus integrantes da elite econômica (em geral, acusados de crimes de colarinho branco, como os delitos contra a Administração Pública, econômicos e empresariais) prolongam-se demasiadamente no tempo, muitas vezes até culminar com a sua extinção pela prescrição, ou mesmo pelo reconhecimento de alguma causa de nulidade processual. Esses processos raramente transitam em julgado ou têm seus réus presos, ainda que em prisão cautelar. E, nas poucas vezes em que isso ocorre, não é raro que em poucos dias sejam soltos pelos Tribunais, coisa que dificilmente ocorre com réus pobres.

Trata-se, é verdade, de meras impressões, mas que não deixam de ser corroboradas ao se constatar qual é o percentual de pessoas presas no Brasil por crimes contra a Administração Pública e crimes previstos na lei das organizações criminosas: apenas 1,46% e 0,79%, respectivamente, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com dados de 2018. Elas também encontram suporte no saldo de prisões ocorridas nas grandes operações de combate à corrupção que ocorreram na história recente do país: na operação Lava Jato, por exemplo, dos 42 agentes públicos e políticos denunciados, 21 foram condenados, mas apenas um permanece atualmente preso.

Em resumo: temos um sistema que pune pouco (alta impunidade), mal (deixa de fora os crimes mais graves) e de modo desigual (alta seletividade). Ante a premência e a notoriedade desses problemas, qualquer um esperaria que um eventual novo CPP buscasse ao menos amenizá-los.

Entretanto, ao se analisar o Projeto de Lei nº 8045/2010 (texto substitutivo), a sensação que fica é a de que ele considera a realidade de algum outro país, mas não a do Brasil. É um projeto de norma que foca em problemas imaginários e que deixa de enfrentar os reais. Que é certeiro em tornar o que é ruim ainda pior, mas impreciso e incompleto quando ousa tentar alguma melhoria.

Alguns exemplos ilustram isso. É o caso do art. 40, p. 3º do PL, que concentra os poderes de investigação criminal nas mãos do Delegado de Polícia, atribuindo-os ao Ministério Público apenas supletivamente, na hipótese de a investigação policial revelar-se ineficiente. Trata-se de dispositivo que, além de contrário à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), muito claramente vai na direção exatamente oposta à diminuição da impunidade no país, já que não é difícil se concluir que, se menos autoridades públicas poderão investigar crimes, menos crimes serão investigados e, consequentemente, punidos. Diante disso, uma alteração desse jaez somente se justificaria caso houvesse dados que indicassem que a realização de investigação criminal pelo Ministério Público prejudica o sistema de justiça penal no Brasil mais do que com ele contribui. Não há dados nesse sentido, embora seja certo que a atividade de investigação criminal do Ministério Público necessite ser profissionalizada e aperfeiçoada, a começar pela sua padronização por meio de alguma disciplina normativa. A sua eliminação, todavia, não parece ser o caminho.

A lógica subjacente ao art. 40, p. 3º do PL 8045, aliás, parece ser a mesma dos artigos 39, p. 7º, 240 (caput), 40, p. 1º, 236, p. 2º, 239, p. 4º, 297, p. 1º e 275. Todos eles, de um jeito ou de outro, ampliam os poderes do Delegado de Polícia na condução da investigação criminal, ora lhe dando novas atribuições (antes previstas apenas para magistrados, como ocorre com o art. 40, p. 1o), ora enfraquecendo o papel de outros atores que também desempenham funções na investigação (como os peritos técnicos, como ocorre com o art. 240). Esses dispositivos parecem se apoiar no pressuposto de que a concentração de poderes investigativos nas mãos do Delegado de Polícia é uma das chaves para tornar o sistema criminal brasileiro melhor, mais justo e eficiente. Trata-se de pressuposto, todavia, que não encontra qualquer respaldo em dados da realidade.

De fato, desde a época do império, mais especificamente desde 1866, com o Decreto imperial 3.598 (que criou duas polícias distintas, a polícia civil e a polícia militar) e depois em 1871, por meio da Lei 2033 (que criou o inquérito policial), o modelo brasileiro de investigação criminal é o mesmo, estando centrado nas figuras do inquérito policial e do Delegado de Polícia, que é parte de uma carreira jurídica (conforme a Lei n. 12.830/13). O mundo mudou, a criminalidade se alastrou, se organizou e se modernizou, mas o Brasil continuou apostando na investigação criminal como uma atividade burocrática, no inquérito policial como procedimento cartorário e no Delegado de Polícia como autoridade jurídica que o preside, quase na condição de julgador das provas que servidores de outra carreira colhem. Os resultados desse modelo já foram tratados aqui: índices notoriamente baixos de resolução de crimes no país. É sintomático, aliás, que tal modelo brasileiro praticamente não encontre semelhantes ao redor do mundo, sendo que, pelo o que se sabe, apenas Guiné Bissau adota estrutura similar. Apesar disso, o PL 8045, em pleno século XXI, resolve dobrar a aposta e confere ao processo penal brasileiro “mais do mesmo”. Não se enxerga o interesse público por trás dessa escolha, enxergando-se, ao revés, apenas o interesse de uma corporação específica.

Outro exemplo de dispositivo do PL 8045 que parece ir na direção contrária ao objetivo de tornar o processo penal brasileiro mais eficiente e justo é o artigo 197, parágrafos 2 e 3, que proíbe que condenações criminais se baseiem unicamente em indícios.

Esse é um dispositivo que, a um só tempo, não possui qualquer respaldo teórico – já que há muito se sabe que não é a natureza da prova (se direta ou indireta, caso dos indícios) o fator determinante na formação da convicção do magistrado, mas sim a sua qualidade – e que contraria a realidade e lógica das coisas – já que é um dado da realidade a circunstância de que vários indícios em conjunto, quando fortes e indutivos, são, sim, capazes de demonstrar a ocorrência de um fato criminoso. Além disso, esse dispositivo, se mantido, dificultaria a punição de crimes que normalmente apenas podem ser provados por indícios, já que praticados mediante esquemas sofisticados e complexos, por sujeitos preordenados a não deixarem prova direta da sua execução. É o caso, por exemplo, dos crimes de lavagem de capitais, de pertencimento à organização criminosa e crimes contra administração pública e financeiros em geral, que são, aliás, tipicamente praticados por pessoas integrantes de uma elite econômica. Tal dispositivo, portanto, além de equivocado teoricamente e ilógico faticamente, ainda contribuiria para aumentar a desigualdade do sistema de justiça brasileiro, dificultando a punição de ricos e poderosos. Estes já são menos de 2% nas prisões brasileiras, e tenderão a representar parcela ainda menor se o artigo 197, parágrafos 2 e 3 do PL 8045 for mantido.

Para finalizar os exemplos, cito o paragrafo único art. 84 do PL, que possibilita à Defensoria Pública o “patrocínio da defesa do acusado que, por qualquer motivo, não tenha contratado advogado”, ainda que não se trate de acusado pobre. Na prática, esse dispositivo possibilitará que a Defensoria Pública defenda em juízo não apenas os hipossuficientes economicamente, mas, também, qualquer um que, por motivos variados, não tenha nomeado advogado particular.

A defesa dos acusados pobres, a ser desempenhada pela Defensoria Pública dos Estados e da União, é uma das missões mais nobres previstas pela Constituição federal: por meio dela, busca-se dar acesso à Justiça justamente àqueles que, não fosse tal previsão, restariam indefesos. Mas é fato notório que o cumprimento dessa missão tem sido dificultado pela escassez de recursos materiais e humanos à disposição das Defensorias Públicas ao redor do país, as quais, apesar da competência e esforço de seus integrantes, nem sempre conseguem prestar assistência jurídica célere e de qualidade a todos os réus necessitados. Aliás, certamente a falta de acesso a defensores públicos ajuda a explicar a composição socioeconômica e racial da população carcerária brasileira, sendo ela um dos elementos que sustenta a já citada seletividade do sistema de justiça criminal do Brasil.

Ora, se a Defensoria Pública já tem encontrado dificuldades de realizar a defesa técnica dos réus pobres que não podem pagar por advogados privados, não é difícil concluir que essa missão ficará ainda mais prejudicada caso a Defensoria também possa defender aqueles réus que têm condições de pagar por advogados particulares. O efeito direto dessa alteração legislativa parece ser perverso: menos acesso de acusados pobres a uma defesa célere e de qualidade, o que, por sua vez, contribuirá para o alargamento da já citada injustiça que marca o processo penal brasileiro.

Os exemplos acima expostos ilustram mas infelizmente não exaurem os dispositivos do PL 8045 (substitutivo) que merecem ser revistos por, salvo melhor juízo, caminharem na direção oposta ao que se esperaria de um novo CPP brasileiro. Existe um legítimo (posto que amparado na realidade e em vivências diárias) sentimento de desesperança da sociedade brasileira em relação à Justiça (e todos seus atores), sentimento esse que, entre os vários efeitos colaterais deletérios que produz, torna o pacto social mais frágil, a crença na democracia menos firme e o respeito às instituições algo menos praticado. Diante disso, em um país marcado pela impunidade e pela desigualdade na aplicação da lei penal como é o Brasil, não há mais qualquer espaço para alterações na legislação penal e processual penal que não apenas ignorem, mas também reforcem esses problemas graves e históricos. Reconhece-se que a solução para eles é complexa, multidisciplinar, sendo limitado o poder transformador de uma legislação. Apesar disso, se de algum modo um novo CPP pode contribuir com o objetivo de tornar o sistema de justiça criminal brasileiro mais eficiente e justo, certamente não é com as alterações previstas no PL 8045 (substitutivo).

Luana Vargas Macedo é mestre em Direito pela Universidade de Harvard. Procuradora da República desde 2012, tendo integrado o grupo de trabalho da Lava Jato na PGR entre 2017 e 2020. Antes de ingressar no MPF, foi procuradora da Fazenda Nacional por seis anos, período em que integrou a Coordenação de Assuntos Tributários, além de ter representado a Fazenda Nacional junto ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).

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