No dia 6 de julho último, a juíza Wanessa Figueiredo dos Santos Lima, da 2ª Vara Federal de João Pessoa, julgou procedente ação do Ministério Público Federal (MPF) e declarou nulas as concessões para funcionamento das rádios 105 FM, de Santa Rita (PB), e Sistema Rainha de Comunicação, de Campina Grande (PB), outorgadas, respectivamente, em 1988 e 1989 pelo Poder Executivo, com aprovação do Congresso Nacional. A decisão reconheceu que a participação de político titular de mandato eletivo – no caso, o deputado federal Damião Feliciano – no quadro societário de empresas de radiodifusão viola o artigo 54 e outros preceitos fundamentais da Constituição Federal. Essa decisão, pioneira na Paraíba, é resultado de ação civil pública ajuizada pelo MPF em 12 de setembro de 2017.
A ação é oriunda de representação elaborada por organizações da sociedade civil – Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, Artigo 19, Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e Núcleo de Estudos da Violência da USP – a partir de um levantamento do Intervozes que mapeou empresas de radiodifusão em todo o país controladas por políticos titulares de mandato eletivo. A alegação é que padecem de nulidade as concessões de emissoras dadas pelo Poder Executivo, com aprovação do Congresso Nacional, a membros do parlamento, já que há proibição constitucional específica do controle de empresas de comunicação e radiodifusão por parlamentares e seus familiares.
Merece destaque a participação de movimentos sociais como as organizações mencionadas no acompanhamento e fiscalização do direito à comunicação para que as empresas que atuam no setor respeitem as regras previstas na Constituição Federal e na legislação que trata do assunto. Essa participação da sociedade civil organizada é fundamental para que o Ministério Público possa cumprir o seu papel de garantir que os direitos assegurados na Constituição possam ser implementados. É dessa parceria que nasceu a Ação Civil Pública nº 0807488-39.2017.4.05.8200, que anulou as concessões de radiodifusão outorgadas ao deputado paraibano.
Um dos fundamentos do MPF para requerer a anulação das outorgas é o fato de que o artigo 54, inciso I, alínea a, da CF, proíbe que parlamentares, deputados ou senadores, firmem ou mantenham contratos com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo nos casos de contratos uniformes, tais como contrato para fornecimento de energia elétrica, água ou outros que decorrem da relação uniforme de consumo disponível para toda a população. No caso, a relação contratual que liga o sócio à empresa de radiodifusão, concessionária de serviço público, e o contrato de concessão, firmado diretamente com a União, não são caracterizados como contratos uniformes. Assim, a primeira ilegalidade está no fato de o parlamentar Damião Feliciano, proprietário e sócio das emissoras, respectivamente, firmar contrato de concessão para exercer um serviço público, violando o artigo 54 da Constituição. Esse é o primeiro argumento acatado pela Justiça Federal de primeira instância.
Outro argumento refere-se ao conflito de interesses que marca a relação entre público e privado, isto é, entre o Poder Público, que concede as outorgas, e as empresas de radiodifusão. Não raro, o parlamentar sócio da empresa vota no processo legislativo que lhe outorga uma concessão de radiodifusão, ou seja, ele tem poder de aprovar medida em seu próprio benefício. Ou seja, além da ilicitude decorrente de contratação proibida pela Constituição, não se afigura legítimo que um parlamentar aprove uma concessão da qual é o próprio beneficiário.
É também comum que empresas de radiodifusão recebam recursos de publicidade oficial de órgãos públicos, sobretudo do Poder Executivo. Por causa disso, surge o risco de o fluxo de recursos públicos para empresas de congressistas ser utilizado como forma de angariar ilegítima e ilicitamente o apoio de parlamentares sócios das empresas de radiodifusão a determinados projetos de interesse do Executivo.
Por fim, a outorga de concessões de rádio e TV a políticos e seus familiares – prática antiga e ainda frequente no país – interfere diretamente no processo democrático. Isso porque políticos e famílias de políticos passam a utilizar as emissoras para promover suas ações e seus nomes. No caso do deputado Damião Feliciano, ele possuía programas específicos, a exemplo do programa “De Coração para Coração”, e outros conhecidos do público paraibano. Por meio desses programas, o deputado promovia o seu nome, em detrimento de outros candidatos com quem disputava mandatos.
O Brasil já tem um sistema político em que a distribuição dos recursos do fundo partidário ocorre de modo extremamente desigual. Além disso, parlamentares que ocupam cargos têm acesso a emendas de até R$ 20 milhões do Orçamento da União para promover o nome do parlamentar perante eleitores de sua região. Some-se a isso o fato desses parlamentares outorgarem a si próprios concessões de rádio e televisão, por meio das quais podem ampliar a divulgação de suas ações e de seus nomes, silenciar a exposição de opositores ou transmitir informações contrárias a seus adversários.
Não é difícil, portanto, entender como o autobenefício deturpa e desequilibra o processo político, favorecendo a perpetuação de políticos radiodifusores. Nesse jogo, pessoas que não estão no poder ou não são familiares de quem lá está têm maiores dificuldades de conquistar um mandato eletivo, pois a disputa eleitoral se dá em bases desiguais, em razão da possível seleção de informações realizada pelos veículos controlados por políticos, seja silenciando ou prejudicando opositores, seja favorecendo os próprios projetos.
Para além da inconstitucionalidade, é preciso compreender o impacto da concessão de radiodifusão a políticos e seus familiares sob a ótica da democracia. A partir do momento em que a política se torna um processo tão desigual, onde uns têm acesso a tantos recursos, em detrimento de outros que não têm acesso ao fundo partidário, às emendas parlamentares e à visibilidade nos meios de comunicação, torna-se consideravelmente mais difícil o surgimento de novos nomes no cenário político, o que é péssimo para o regime democrático.
A decisão da 2ª Vara Federal da capital paraibana é exemplar e chama atenção para a necessidade urgente de se garantir meios para que a disputa política ocorra em bases mais igualitárias. A democracia se caracteriza não pela alternância de poder, mas pela possibilidade de alternância de poder. O controle de tantos meios por um expoente ou grupo político em detrimento de outros que queiram disputar o poder torna impossível a existência de uma disputa realmente democrática. Portanto, o direito à comunicação associado à lisura nas concessões de rádio de televisão favorece e fortalece o equilíbrio oportunidades no processo eleitoral e democrático. Não seria demais afirmar que a ‘paridade de armas’ nesse contexto democratiza o próprio processo eleitoral e democrático.
Por fim, ressalte-se que o controle político-partidário de emissoras de rádio e de televisão subvertem ainda o papel democrático da imprensa. Em vez de servirem ao controle do poder político, acompanhando e fiscalizando ações de quem está no poder, os órgãos da imprensa, nas mãos de congressistas, tendem a se tornar subservientes aos políticos que os controlam, com perda da capacidade crítica e jornalística de quem produz e propaga opinião e informação. Há aí relevante violação ao direito difuso de comunicação, em razão da perda de condições objetivas e até subjetivas de controle social do Poder Público.
Em suma, a sentença procedente na ação movida pelo MPF - com apoio da sociedade civil - concretiza o direito fundamental à comunicação e saneia grave violação à Constituição. Que a decisão seja confirmada nas demais instâncias e se some aos esforços judiciais e extrajudiciais para superação de prática tão nefasta ao espaço público e à democracia.
José Godoy Bezerra de Souza é Procurador da República atuando no Ministério Público Federal na Paraíba. Bacharel em Direito
Bráulio Santos Rabelo de Araújo é Defensor Público do Estado de Minas Gerais, Bacharel em Direito, Doutor em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo (USP) e ex-integrante do Intervozes
* Artigo publicado no Observatório Paraibano de Jornalismo