O parlamentar e autoproclamado agropecuarista volta-se contra o que considera “decisões subjetivas da Funai” na demarcação de terras indígenas.
Em abono da PEC 215/2000, que busca transferir a responsabilidade pela demarcação ao Congresso Nacional, diz que o texto aprovado apenas “reconhece que o tema não é somente técnico, mas exige juízo de conveniência e oportunidade, que somente uma casa política, despregada da burocracia do Poder Executivo, poderia exercer”.
O parlamentar ainda garante que “Os congressistas avaliarão as propostas em termos de áreas dentro do território nacional. Vão analisar também qual a repercussão para o desenvolvimento do país, para a produção de alimentos, para a política agrícola e até para questões relacionadas à defesa e soberania nacional”.
Com o devido respeito, o juízo a ser feito a propósito da demarcação de terras indígenas é sim puramente técnico, jamais político. Não se cuida de aferir a conveniência e oportunidade de delimitação, mas, apenas e tão-somente, se a área é, ou não, indígena.
Isso é assim porque a Constituição Federal garantiu aos índios direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. O texto magno também define que essas terras são as habitadas permanentemente pelos índios, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Não satisfeita, a Constituição da República ainda assegura que “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”, bem assim que tais terras são inalienáveis e indisponíveis (e o direito sobre elas, imprescritíveis); da mesma forma que veda a remoção dos índios de suas terras, salvo hipóteses excepcionais que elenca.
Por fim, a Constituição Cidadã declara a nulidade e a extinção de todo e qualquer ato que tenha por objeto a ocupação, domínio e posse das terras dos índios.
Assim, nesse quadro tão abrangente e eloquente de direitos dos índios sobre as suas terras, única perquirição que tem lugar é se o território é mesmo tradicionalmente ocupado pelas comunidades indígenas, impondo-se a demarcação na hipótese afirmativa.
O ato administrativo que homologa a demarcação sequer constitui o direito dos povos interessados, mas apenas o declara, justamente porque o direito dos índios à terra é anterior (original, imemorial) à própria delimitação formal da área.
Neste quadro, absolutamente desinfluentes eventuais considerações a respeito de alegada repercussão para o desenvolvimento do país, tampouco para a política agrícola ou algo que o valha. Não que tais temas não sejam relevantes; é que eles definitivamente não interferem mesmo (não devem interferir) no processo demarcatório.
Não se trata de “demonizar os produtores rurais”, que o congressista defende com tanta devoção, mas de dar a César o que é de César e, acima de tudo, cumprir a lei maior do país.
Semelhante discurso econômico-desenvolvimentista, que subjaz no escrito hostilizado, justificou no Brasil, por muito tempo, a escravidão. Considerava-se, naquelas épocas, que se se abolisse a servidão humana, os prejuízos econômicos advindos levariam o país à falência.
Nos Estados Unidos, ao tempo da exploração do homem (negro) pelo homem (branco), dizia-se que a América estava apaixonada por sua própria vergonha.
Passando os olhos pelo sofrimento dos povos indígenas, ainda lamentavelmente e dolorosamente atual, e tudo que o Governo Federal tem feito, ou melhor, não tem feito pelas comunidades tradicionais, não deveria causar assombro a afirmação de que o Brasil ainda se encontra apaixonado por uma de suas maiores vergonhas.
A demora nesse desolador contexto perdura por apenas algumas centenas de anos.
Reginaldo Trindade
Pós-Graduado em Direito Constitucional
* Procurador da República. Responsável, no Estado de Rondônia, pela Defesa do Povo Indígena Cinta Larga.