Em 2001, ocorreram cinco mortes no rompimento em Macacos, zona metropolitana de Belo Horizonte (MG); em 2003, a da Cataguazes Papel (MG), com derramamento de 1,4 bilhões de lixívia negra e 600 mil pessoas sem abastecimento de água; em 2007, Miraí (MG), com dois milhões de litros de lama de rejeitos da extração de bauxita, causando o desalojamento de mais de quatro mil pessoas.
Era preciso fazer algo.
A solução legislativa, não raro ineficaz se dissociada da real implementação dos novos mecanismos, foi a encontrada.
Nascia a Lei 12.334/2010, criando a política nacional de segurança de barragens.
O novo texto legal busca implementar forma de controle lastreada em conceito de risco ofertado pela estrutura, aliado ao dano potencial.
Risco e dano são conceitos distintos.
Os três níveis de risco -- baixo, médio e alto -- se vinculam a aspectos construtivos e de manutenção dos barramentos.
Ao revés, o dano potencial considera a existência de vidas humanas e demais elementos da flora e fauna a jusante da instalação, gerando os níveis de baixo, médio e alto dano potencial.
A barragem de Fundão, rompida em Mariana, por exemplo, apesar de ter sido classificada como de baixo risco, apresentava dano potencial alto justamente porque uma comunidade inteira, a de Bento Rodrigues, restava instalada no caminho da tsunami de rejeitos em eventual ruptura.
A amálgama desses dois fatores produz a classificação, em cinco níveis, de A a E, que deve acender o sinal de alerta ao fiscalizador. E este, primariamente, ainda que haja a concorrência de outros órgãos, é o Departamento Nacional de Produção Mineral -DNPM.
A importância da correta classificação é ímpar, pois dela depende maior ou menor intervalo para que o órgão público exerça seu mister, buscando evitar ocorrências como a tragédia que vivenciamos a partir de 5 de novembro de 2015.
Por óbvio, um intervalo de fiscalização incompatível com o risco ou com o dano potencial propicia a ocorrência de desastres.
A lei traz ainda, dentre a obrigatoriedade de apresentação de outros documentos, aquela do Plano de Segurança da Barragem e do importantíssimo PAEBM, ou seja, de plano de ações emergenciais.
Mesmo que mitigado ao máximo o risco, ele não deixa jamais de existir.
O PAEBM traz, ou deveria trazer, rol de medidas que devem ser tomadas em caso de ruptura iminente ou efetiva, tais como uso de sirenes, organograma com quem deve fazer o que, quais telefones devem ser acionados, assim como análise de possíveis impactos a jusante e mapas georreferenciados, entre outras.
A portaria 562/2013, que regulamentou a legislação no âmbito da autarquia federal, dispõe que o PAEBM deve estar disponível na associação de moradores, na Defesa Civil, no escritório da mineradora e onde mais se entender como necessário.
Esse documento, pela importância em momento de sinistro, deve ser facilmente acessível e encadernado em capa vermelha, para fácil visualização.
Foi justamente essa busca de evitar a tragédia que levou o Ministério Público Federal a, após sucessivas reuniões com os órgãos estatais, concluir que a nova legislação não seria corretamente aplicada.
Veja que a lei foi publicada em 2010, com lapso temporal de dois anos para sua entrada em vigor, mas muito pouco havia sido feito, quer seja no treinamento de pessoal, quer seja na montagem de rotinas a serem utilizadas, para dar concretude aos mandamentos legais -- isto já no primeiro semestre de 2012.
À época foram propostas, pelo MPF, 55 ações civis públicas, todas referentes a barragens que não tiveram, no relatório próprio, a estabilidade garantida pelo empreendedor.
Destas, passados três anos, 19 ainda se encontram sem estabilidade garantida.
Vale dizer: o empreendedor declara que ou não tem como avaliar a estabilidade, por falta de documentos, sequer o "as built" da construção, ou que o auditor afirmou, com todas as letras, que a barragem não é estável (!).
Há que se pensar, imediatamente, na paralisação das atividades que ainda "alimentam" tais barragens e na retirada dos rejeitos no caso de passivos ambientais.
Se, por certo, o número insuficiente de técnicos do DNPM -- em torno de uma dezena para atuar em todo o Brasil -- é um dos fatores a serem considerados na avaliação do (in)sucesso da política criada pela lei, não menos certo é afirmar que, independentemente do número de servidores, há situações em que resta evidente o descumprimento das normas.
Medidas consistentes, tais como aplicação de advertências, multas e mesmo paralisação de atividades, não são tomadas.
O próprio DNPM poderia realizar, à custa do empreendedor, as obras necessárias para estabilização de barragens, conforme artigo 18, parágrafo 2°, do diploma legal mencionado, não havendo registro de tal tipo de iniciativa.
E o problema é, ainda, bem mais profundo.
Note-se que o cumprimento da Lei 12.334/2010 tem reflexos diretos no licenciamento ambiental, um instrumento da política nacional de meio ambiente que tem por escopo avaliar possíveis danos e estabelecer medidas para evitá-los, compensá-los e mitigá-los.
A garantia de estabilidade das barragens e todas as medidas que a envolvem são requisitos para que tal estrutura seja corretamente licenciada.
Todavia, em momento no qual restam evidentes falhas em ambos os procedimentos administrativos -- aquele, a cargo do DNPM, e o próprio licenciamento, a cargo do município, estado ou União, conforme o caso --, o discurso que vem galgando adeptos nos últimos anos, tanto nos legislativos estaduais quanto no federal, é da necessária flexibilização dos licenciamentos ambientais.
A fundamentação é de que o desenvolvimento econômico do País vem sendo retardado pela burocratização dos procedimentos de licenciamento, o que parece altamente inoportuno.
Afirma-se, para tal flexibilização, que há que se ter prazos rígidos, a serem observados pelos órgãos que autorizam e/ou licenciam as atividades na análise de documentos apresentados pelo empreendedor. Os mesmos órgãos/instituições que vêm sendo sucateados pelo Executivo. Cria-se a dificuldade e, ao depois, permite-se a facilidade.
As consequências das falhas na intervenção estatal obrigatória são evidentes.
Resvalamos, a todo momento, em hipóteses de improbidade administrativa pela omissão na fiscalização.
Em âmbito cível, as necessárias indenizações bilionárias, de difícil quantificação dos danos, ainda que implementadas, levarão anos para recuperar, e parcialmente, a biota afetada.
O Patrimônio Cultural, de matriz finita, resta irrecuperável.
Acendendo a "lâmpada da memória", de Ruskin, não devem ser feitas obras "fake" para reconstrução do que se perdeu em Bento Rodrigues.
E mais: o olhar sobre as hipóteses criminais deve ser outro.
O empreendedor criou o risco de produzir as mortes humanas quando, além de implementar a barragem com dano potencial alto, deixou de apresentar, ou apresentou de forma absolutamente ineficaz, o plano de ações emergências detalhado.
Assume o empreendedor e/ou seu preposto a função de garantidor prevista no artigo 13 do Código Penal. Um plano inócuo ou mesmo sua não observação pode levar a hipóteses, no caso de mortes humanas, de responsabilização por homicídio doloso.
A morte passa a ser resultado não só previsível, mas declarado como possível pelo próprio empreendedor.
Para além disso, e desta vez sob a ótica da proteção da flora e da fauna, há uma profusão de artigos a incriminar tanto o gestor público, que eventualmente atuou de forma conivente, como a empresa e seus responsáveis, a saber, artigos 33, 38, 40, 54, 62 e 69-A, todos da Lei 9.605/98.
A tragédia de Mariana não foi a primeira e, na hipótese de continuarem os discursos por mudanças legislativas simplistas, sem observar o evidente sucateamento da máquina pública, não será a última.
*Artigo de Zani Cajueiro, diretora Cultural da ANPR e procuradora da República da Tutela do Meio Ambiente no Rio de Janeiro, membro do Grupo de Trabalho Mineração da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Especialista em Direito Ambiental e mestra em Meio Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável pela UFMG. Artigo publicado originalmente no blog da ANPR no HuffPost Brasil.