1. Introdução
1 2Muito embora a Constituição atual estabeleça, desde 1988, como dever individual e coletivo a observância da moralidade administrativa, não há dúvida de que há um longo caminho para se reduzir, em intensidade e extensão, práticas de corrupção pública no Brasil.
As práticas de corrupção se tornaram um fenômeno com acelerada expansão ao longo da segunda metade do Século XX, nos Estados Ocidentais. Tão grave e rápido foi este agigantamento do fenômeno da corrupção, que, no final do Século XX, foi finalmente aprovada a Convenção Internacional Contra a Corrupção da ONU – a Convenção de Mérida. Com suas dificuldades históricas no enfrentamento do problema, esta Convenção foi internalizada somente em 2006, pelo Decreto nº 5.687. São dignas de referência também as Convenções da OCDE (Decreto nº 3.678/2000)e da OEA (Decreto nº 4.410/2002), igualmente internalizadas no direito brasileiro.
Com estas relevantíssimas normas de Direito Internacional Público Anticorrupção, é incontestável que os Estados estão enfrentando uma prática ilícita que sucessivamente foi se espraiando no campo local, regional, nacional, continental e internacional.
Em termos de Direito Administrativo Sancionador, o Brasil está na vanguarda na instituição de sistema cível de prevenção e repressão de práticas corruptivas. Isto se deve à existência de nosso sistema de responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa, previsto no artigo 37, §4º da Constituição, regulamentado pela Lei nº 8.429/1992. Ao longo de seus 29 (vinte e nove) anos de vigência, este diploma se constitui na verdadeira Lei Anticorrupção Brasileira, pelos resultados que sua aplicação ensejou no enfrentamento de práticas de corrupção na organização do Estado.
Como resultado do trabalho de Comissão instituída pela Presidência da Câmara de Deputados, foi apresentado o Projeto de Lei nº 10.887/2018, na Câmara dos Deputados. Após contar com dois Projetos de Lei Substitutivos, em outubro/2020 e junho/2021, o texto foi aprovado pela Câmara e encontra-se atualmente em apreciação no Senado Federal (doravante PLS 2505/2021).
Este breve artigo busca refletir sobre aspectos relevantes do projeto de lei, na sua versão aprovada e remetida pela Câmara dos Deputados ao Senado Federal, com a finalidade de destacar aspectos críticos de dispositivos nela consagrados, e merecedores de avaliação, tendo como pressuposto que, na condição de signatários de Convenções Internacionais Anticorrupção, não é tolerável que o ordenamento brasileiro fragilize as estruturas do sistema de improbidade administrativa, na sua função constitucional de tutela da probidade.
Para tanto, o artigo foi dividido em duas partes fundamentais. Na primeira parte, o estudo oferece o panorama, estrutura e bases atuais do sistema de responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa, para o fim de elucidar as normas que o compõe, bem como sua inserção na ordenação constitucional. Na segunda parte, o artigo concentra-se na crítica a aspectos relevantes da formulação legislativa, em vista dos elementos estruturantes do sistema. Ao final, seguem conclusões e referências bibliográficas.
2 Sistema de Responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa
A história da evolução do Estado de Direito no Brasil é a história da sucessiva reformulação, consolidação e inovação de sistemas normativos concebidos para tornar efetiva a submissão do exercício das funções públicas ao ordenamento constitucional vigente. Todas as Constituições Brasileiras inovaram, em seu respectivo contexto histórico, no tema da responsabilidade dos agentes públicos.
Não foi diferente em 1988. A Constituição da República mudou substancialmente o regime de responsabilização dos agentes públicos, refundando sistemas já conhecidos e estipulando novos mecanismos de punição.
A consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil exige a plena efetividade e operatividade dos sistemas de responsabilização dos agentes públicos cujas bases normativas estão instituídas na Constituição da República, bem como de pessoas físicas e jurídicas que estejam envolvidas nas práticas ilícitas
O sistema de improbidade administrativa – com pedra fundamental estabelecida no artigo 37, §4º da CF - é prova de que o direito positivo na matéria sofreu importante reformulação, devendo a Ciência do Direito Administrativo, dedicada ao Direito Administrativo Sancionador buscar explicar de forma adequada e congruente a realidade jurídica, plasmada a partir da ordem constitucional vigente.
A Constituição não mais fornece sustentação para afirmação doutrinária tão difundida da existência de apenas três instâncias de responsabilidade dos agentes públicos: penal, civil e administrativa (nesta incluída a propalada responsabilidade político-administrativa3). Difundida em textos doutrinários, normas infraconstitucionais e jurisprudência.
O ordenamento brasileiro, nos sucessivos momentos constitucionais, reordenou a forma jurídica de prevenção e repressão de ilícitos funcionais praticados por agentes públicos. Em todas as Constituições, sistemas de responsabilidade foram sendo criados e outros reconfigurados, com ou sem aperfeiçoamentos. Esta movimentação das estruturas do direito positivo responde ao fenômeno da atualização axiológico-normativa,4 própria do direito como sistema de regulação de condutas intersubjetivas, em determinado tempo e espaço.
No caso brasileiro, os vícios seculares da prática administrativa (patrimonialismo, clientelismo, nepotismo, favoritismo etc.) são os ingredientes a dosar a recorrente necessidade de reformulação e aperfeiçoamento institucional na promoção e efetivação da responsabilidade dos agentes públicos. Dentro deste contexto, não há a menor dúvida que o enfrentamento das práticas de corrupção no aparelho ou organização do Estado responde pelas modificações, criações e sucessivas aperfeiçoamentos na matéria.
O atual marco constitucional revela a existência de um sistema constitucional geral, dotado de unidade e coerência, que agasalha no seu interior, os sistemas institucionais específicos de responsabilização de agentes públicos, ao incidirem na prática de ilícitos. Um sistema constitucional geral que ordena variados sistemas constitucionais específicos de responsabilidade, criados ou amparados pela Constituição, merecedores de regulamentação legal para sua plena aplicabilidade, igualmente dotados de unidade e coerência, com o escopo de prevenção e punição de ilícitos funcionais. Este fenômeno constitucional é resultado marcante da crescente constitucionalização do direito administrativo e de seus institutos fundamentais.5
Para entender como operam estas estruturas sistemáticas criadas pelo direito público, a fim de assegurar o império do Estado de Direito, da República,6 da Legalidade e toda a normatividade regente das ações dos agentes públicos, é preciso lançar mão do processo de abstração e de categorização,7 e compreender como se alicerça um sistema8 de responsabilidade, considerado o conceito dogmático mais importante, a partir do qual a realidade constitucional atual pode ser explicada.
Sistema de responsabilidade,9 enquanto conceito jurídico-dogmático, é o conjunto normativo estruturado sobre quatro elementos (bem jurídico, ilícito, sanção e processo), que resultam na aplicação de sanções no caso da prática de ilegalidade funcional, elementos estes que mantêm relações de imbricação ou implicação lógico-jurídica, como produto do processo de positivação de instrumentos institucionais de prevenção, dissuasão e punição de determinadas condutas antijurídicas. Eis o conceito categorial, que serve de base para dissecar o fenômeno normativo.
Há uma relação lógica entre os elementos: o bem jurídico legitima o tipo, que justifica a sanção, que exige o devido processo legal, que pode ocorrer na órbita administrativa ou na órbita jurisdicional. Cada sistema é uma “instância” (conceito vulgarizado no direito brasileiro), que deverá manter relações normativas com as demais, sob a ideia central de racionalidade no enfrentamento de arbitrariedades praticadas no âmbito da organização e funcionamento do Estado, incluindo as recorrentes práticas de corrupção.
Quais são os sistemas de responsabilidade admitidos em certo ordenamento positivo é uma questão de análise do direito em vigor. O conceito ganha um significado jurídico-positivo, porque, partindo do conceito científico, será compreendido a partir de dados do sistema de direito positivo objeto de investigação. Eis o conceito normativo. Sob este aspecto normativo, identificam-se na atual ordem constitucional brasileira nove sistemas de responsabilidade de agentes públicos, em razão da prática de ilícito funcional.
Enquanto exercentes de competências, os agentes públicos devem observar a Constituição e as Leis. Escapando desta ordenação e dos deveres e obrigações criados por atos complementares de produção jurídica, praticam ato ilícito, a olhos vistos ou às ocultas, ensejando o dever de aplicação ao responsável das correlatas consequências jurídicas estabelecidas. Procura-se, assim, a necessária proteção dos bens jurídicos, afetos à atividade estatal ferida pelo comportamento censurável.
A fim de prevenir e reprimir as infrações cometidas, a ordem jurídica estabelece a responsabilidade dos agentes que as praticam ou daqueles que respondem pelas suas consequências. O ordenamento jurídico, como plano normativo próprio de controle da vida social, pressupõe a institucionalização de sanções.10 A imposição de sanções torna efetiva a responsabilidade, em razão do descumprimento das normas jurídicas.
Em razão da verificação de certo ilícito punível11 segue-se determinada sanção jurídica, imponível mediante determinado processo estatal, na tutela de determinado bem jurídico. Sanção externa e institucionalizada. A sanção, como conceito de teoria geral do direito, define-se pela consequência normativamente imposta em face da ocorrência de ilícito cometido contra a ordem jurídica. 12
A noção é entendida no sentido amplo de imposição de gravames como consequência da violação de certa norma jurídica. Teleologicamente, constitui-se um elo deôntico secundário com a finalidade de reforçar o cumprimento de deveres jurídicos. Elo construído pelo direito através do processo de tipificação legal e de imputação jurídica Na inobservância da legalidade, reage o sistema normativo com a imposição de situação jurídica restritiva de certo(s) direito(s) fundamental(ais), direcionada contra o infrator ou contra a pessoa qualificada a responder pelos seus efeitos (sujeito responsável).
Não poderia deixar o ordenamento jurídico de catalogar os remédios para manter a dignidade do império da ordem jurídica, para controlar comportamentos patológicos contra suas estruturas. A imposição de sanções e sua efetiva aplicação é imperativo do ajustamento da conduta às normas jurídicas. Quanto mais aperfeiçoada a técnica de sancionamento, desenhada pela Constituição e desdobrada no curso da produção jurídica a ela complementar, maior o grau de proteção dos valores materiais nela acolhidos.
O grau de institucionalização dos sistemas sancionatórios nos indica o perfil de responsabilidade exigida no Estado de Direito, no desenvolvimento de seu projeto de limitação da conduta dos agentes que atuam em nome do Estado. E mais, quanto maior a diversidade de sistemas sancionatórios, mais consistente se torna a defesa constitucional de valores fundamentais na atividade pública, como desenvolvimento do ideal de Estado Material de Direito, concebido nos tempos atuais em evolução à concepção formal.13
Mirando o fenômeno normativo específico da responsabilidade dos agentes públicos, é possível afirmar que o direito edifica sistemas de responsabilização, quando estabelece conjuntos normativos sancionatórios, de forma unitária e coerente, a partir do regramento dos elementos que os definem (bem jurídico, ilícito, sanção e processo).
Com os olhos centrados nos quatro elementos reputados estruturais para construção dogmática de sistemas de responsabilidade, pode-se cientificamente classificá-los sob diversos critérios. O primeiro pode considerar uma especificação quanto ao âmbito pessoal de validade da norma sancionatória. Nesta linha, existem sistemas gerais de responsabilidade, que visam disciplinar, sob o seu prisma normativo, a conduta de qualquer agente público; e sistemas especiais de responsabilidade, que buscam, sob os respectivos regimes, a limitação da conduta funcional de determinados agentes públicos ou categorias de agentes públicos.
Outro critério fundamental diz respeito a estrutura do sistema de responsabilidade, no tocante ao âmbito material da norma sancionatória. Há sistemas autônomos de responsabilidade, porquanto a incidência da norma tipificadora e das sanções fixadas ocorrem independentemente da deflagração da responsabilidade apurável em outros sistemas. E sistemas não autônomos de responsabilidade, já que, mesmo constituindo uma estrutura normativa à luz dos quatro critérios acima apontados (ilícito, sanções, bens jurídicos e processo), o direito não os tornou, seja no todo ou em parte, independentes.
A autonomia de sistemas sancionatórios não significa perda de racionalidade, exigida no exercício de qualquer competência estatal no Estado de Direito, que abomina o irracional e o arbitrário. Apenas exigirá normas de segundo grau a delimitar o funcionamento coordenado dos sistemas em face da verificação dos mesmos fatos, ou seja, da mesma conduta ilícita. Nesta vertente ingressa o estudo do denominado princípio da independência das instâncias, e as formas estabelecidas de “comunicabilidade” entre as instâncias. Na mesma perspectiva, suscita-se a aplicação do princípio constitucional da vedação ao bis in idem, próprio da racionalidade do Estado de Direito.
Tendo por centro de referência as espécies normativas sancionatórias, visualizados no prisma da divisão dicotômica da teoria geral do direito, pode-se cogitar de sanções de cunho reparatório – consistente na imposição do dever de indenização de prejuízos materiais e/ou morais causados pelo ato ilícito, e sanções de cunho repressivo – consistente na imposição de gravames ou penalidades. A imposição punitiva de pagamento de certo valor pecuniário não outorga à sanção natureza reparatória. A ocorrência de dano é que constitui o elemento essencial para a esta espécie.
Neste último aspecto, podem ser então visualizadas esferas de responsabilidade com exclusiva finalidade reparatória, esferas de responsabilidade com exclusiva finalidade sancionatória em sentido estrito, e esferas de responsabilidades com finalidades reparatórias e sancionatórias e.s.e. (em sentido estrito).
Também é possível vislumbrar uma classificação, conforme a previsão normativa de que o plexo de sanções legalmente estabelecidas podem incidir ou não na esfera jurídica de pessoas físicas e/ou jurídicas, com responsabilidade estabelecida de forma concomitante com a responsabilidade pessoal do agente público. Assim, existem sistemas de responsabilização exclusiva de agentes públicos e sistemas de responsabilização não exclusiva de agentes públicos, aberto a tipificação de conduta de terceiros vinculada à atuação funcional ilícita.
Estas classificações dogmáticas aplicadas à análise do direito administrativo brasileiro, edificado sob pilares sedimentados na própria Constituição, vislumbram no atual direito positivo cenário de pluralidade de sistemas de responsabilidade, não abordada comumente pela doutrina. Uma realidade jurídica mais complexa e rica.
A Constituição atual impõe o reconhecimento dos seguintes sistemas autônomos, aplicáveis a quaisquer agentes públicos, donde o rótulo de sistemas gerais e autônomos de responsabilidade dos agentes públicos: (1) a responsabilidade civil, (2) a responsabilidade penal comum, (3) a responsabilidade eleitoral, (4) a responsabilidade por irregularidade formal e material de contas, (5) a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.
Por ter sido constitucionalmente restringida a determinados agentes ou categorias de agentes públicos, afirma-se a existência dos seguintes sistemas especiais e autônomas de responsabilidade dos agentes públicos : (6) a responsabilidade político-constitucional, (7) a responsabilidade político-legislativa, e (8) a responsabilidade administrativa.
Cabe enfatizar a existência de outro sistema geral de responsabilidade, previsto no Texto Maior, como sistema geral de responsabilidade dos agentes públicos, não autônomo, derivado da (9) responsabilidade pela prática de discriminação atentória dos direitos e liberdades fundamentais. 14
Nove estruturas sancionatórias e sistemáticas que compõem, a seu turno, um sistema maior, o sistema constitucional geral de responsabilidade dos agentes públicos. Não se vislumbram outros sistemas na atual ordenação constitucional. Sistemas que operam no campo do Direito Civil, Direito Penal, Direito Administrativo Sancionador, Direito Eleitoral e Direito Constitucional.
Os nove sistemas acima identificados são as engrenagens do sistema constitucional de responsabilização de agentes públicos no Brasil, formado por todas as estruturas normativas constitucionais que sustentam cada qual, e pelo conjunto de princípios e regras aptos a regular o modo de funcionamento e de interconexão normativa, com o propósito de firmar a racionalidade do direito público nesta tarefa de prevenir e punir ilícitos funcionais, por meio de normas jurídicas sancionatórias.
A referida classificação inova na análise dogmática do fenômeno jurídico, porque reconhece a perda total de funcionalidade da classificação tricotômica ainda em voga. Redimensiona o fenômeno da responsabilidade a partir dos seus fundamentos constitucionais. Afirma a existência de três esferas gerais de responsabilidade dos agentes públicos amplamente não reconhecidas com este status na doutrina do direito público, quais sejam, a responsabilidade por irregularidade formal e material de contas, a responsabilidade eleitoral e a responsabilidade por improbidade administrativa. Localiza dois sistemas adequadamente a responsabilidade político-constitucional e político-legislativa no sistema constitucional geral. Projeta a relevância do sistema de punição de atos atentórios dos direitos e liberdades fundamentais, hoje ainda tratado de forma não autônoma como “abuso de autoridade”. Não deixa, enfim, de promover o reconhecimento da responsabilidade civil, penal comum e administrativa, com os traços jurídicos próprios da constitucionalização das bases destes sistemas de responsabilidade, operada pela Lei Maior.
É fundamental observar que o critério de análise é a prática de ilícito na condição de exercente de função pública (agente público). Porque haverá outras situações de ilicitude em que a pessoa do agente público poderá incorrer em responsabilidade jurídica, mas perfilhada em outros sistemas sancionatórios, a título de censura jurídica do descumprimento de deveres jurídicos alheios ao exercício funcional. É o caso da responsabilidade administrativa profissional e da responsabilidade administrativa fiscal, em que o agente público poderá ser sancionado como sujeito infrator, na condição de exercente de determinada profissão ou como sujeito infrator contribuinte.
Para efeito do presente artigo, o destaque recai sobre o sistema de responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa, que, neste momento da evolução do ordenamento brasileiro, é objeto da proposta legislativa de revisão, ora em discussão no Senado Federal, decorrentes da aprovação do PLC nº 10.887/2018, tramitando atualmente na Câmara Alta como PLS 2505/2021.
A improbidade administrativa constitui um sistema constitucional geral, autônomo, não exclusivo, e com feição primariamente preventiva/punitiva (e secundariamente reparatória), de responsabilidade dos agentes públicos e terceiros.
Destaca-se no sistema constitucional geral como espécie de ilícito material catalogado no artigo 37, §4° da Constituição Federal, também referido no artigo 15, inciso V, como hipótese de suspensão dos direitos políticos, e recentemente alocada no artigo 97, parágrafo 10, inciso III do ADCT (EC nº 62/2009), artigo 101, parágrafo 3º do ADCT (EC nº 99/2017). artigo 104, inciso II do ADCT (EC nº 94/2016). Somente a União Federal pode disciplinar por lei nacional normas que compõem o sistema de responsabilidade da improbidade administrativa.
O artigo 37, parágrafo 4º estabelece a proteção da probidade como bem jurídico fundamental à organização do Estado. Os âmbitos do sistema encontram seus contornos na própria ordenação constitucional, nos limites de seus princípios e regras. Trata-se de inegável inovação da sociedade brasileira criando, em 1988, uma formalização jurídica desconhecida em outros sistemas constitucionais ocidentais, na medida em que estabelece um sistema de Direito Administrativo Sancionador e encomenda ao Poder Judiciário, em sua jurisdição civil comum federal ou estadual), a missão de aplicá-lo.
A vedação à prática de atos de improbidade administrativa é concretização constitucional autêntica do Princípio Republicano, e seus corolários de moralidade e impessoalidade no exercício das atividades estatais. Relacionado com a moralidade administrativa (artigo 37, caput), a probidade é o bem jurídico catalisador deste regime de Direito Administrativo Sancionador, cabendo ao legislador decantá-lo e projetar ilícitos que visem sua tutela (na forma de lesão ou perigo de lesão), sendo cristalina a admissão da tutela da honestidade, zelo ao patrimônio público, imparcialidade e lealdade institucional, extraídos da matriz ética constitucionalizada, como eixos axiológicos fundamentais do sistema.
A proteção dada ao bem jurídico indica que a tipificação constitucional da improbidade administrativa atinge o exercício de qualquer função estatal. Abrange, por conseguinte o exercício de funções administrativas, legislativas e jurisdicionais, bem como quaisquer outras funções públicas a cargos das Instituições de Estado (destacadamente, Ministério Público e Tribunais de Contas). Não houve nenhuma restrição pessoal ou funcional ao campo de incidência constitucional do regime de improbidade. Do mesmo modo, o domínio punitivo vai abranger a possibilidade de imposição de sanções a quaisquer pessoas físicas (mesmo não ostentando vínculos individualizados estatutários ou não com o Estado) e jurídicas, envolvidas na prática da improbidade.
O sistema constitucionalizado no artigo 37, parágrafo 4º, tem na Lei nº 8.429/1992 o seu estatuto geral. Aprovada em cenário de crise institucional em 1992, esta lei consagrou a Lei Geral de Improbidade Administrativa (LGIA). O adjetivo geral é salientado em razão da existência de diversas outras leis nacionais extravagantes, tratando da mesma matéria, com dispositivos extravagantes, não incorporados à lei geral.
Como se depreende da LGIA, o sistema foi construído a partir do processo de depuração do bem jurídico, com a tipificação de atos que importam em enriquecimento ilícito (art. 9º), atos que causam prejuízo ao Erário (art. 10), e atos que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11), sistema originário descaracterizado pela Lei Complementar nº 157/2016, que inseriu o artigo 10-A para atos de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário, em situação especialíssima.
Tal como arquitetado na Lei nº 8.429/1992, o sistema foi construído a partir da tipificação da conduta de agentes públicos (art. 1º), adotando, entretanto, uma significativa extensão semântica deste conceito clássico (art. 2º), tendo em vista a forma de discriminação das entidades tuteladas pelo domínio sancionador. Esta abrangência reformulada do conceito de agente público foi acompanhada da submissão de terceiros (pessoas físicas e jurídicas), envolvidos na prática da improbidade administrativa, como sujeitos responsáveis (art. 3º), na disciplina da coautoria e participação no ilícito, incluindo o tratamento punitivo de pessoas jurídicas (com ou sem finalidades lucrativas) envolvidas na prática da ilicitude combatida.
Tal como originalmente perfilhado na Lei nº 8.429/1992, o sistema – no regramento do atual artigo 12, incisos I, II, III e IV - reproduz as sanções constitucionais expressas (perda da função pública e suspensão de direitos políticos), implícitas (perdimentos de valores patrimoniais ilicitamente acrescidos) e inova nas penalidades (multa civil e interdições de direitos).
Com a previsão do sistema no artigo 37, §4º, o Texto Constitucional estabelece um mandamento supralegal de obrigatória ou inafastável jurisdicionalização da reação sancionatória à prática de improbidade administrativa, por partes de agentes públicos e particulares (pessoas físicas e jurídicas).
Concentrando a titularidade da imposição unilateral de sanções nas mãos do Poder Judiciário, após introdução da irrestrita aplicação da proporcionalidade (por força da Lei nº 12.120/2009), com competência acusatória reconhecida ao Ministério Público e entes lesados (“pessoas prejudicadas”), este domínio normativo floresceu ao longo dos últimos vinte e nove anos, tornando-se, na área cível, a verdadeira Legislação Nacional Anticorrupção, cujo título só recentemente o Poder Executivo da União tentou enfraquecer com o nominalismo empregado na Lei nº 12.846/2013.15
A expansão do domínio punitivo foi posta em movimento com a efetividade da tutela jurisdicional obtida com sua operacionalização, na medida em que Ministério Público e Advocacia Pública passaram a utilizar a LGIA amplamente no controle da probidade na tutela do patrimônio público e social. A trajetória ascendente da legislação brasileira de improbidade acompanha a evolução progressiva do direito internacional público consagrado ao enfrentamento da corrupção, representado pela celebração de Convenções Internacionais contra a Corrupção, destacadamente no âmbito da OCDE, OEA e ONU, todas regularmente integradas ao direito brasileiro.
No plano legislativo doméstico, houve significativos avanços na improbidade administrativa, no período de 1992-2013. A expansão normativa do sistema foi progressiva. Ocorreu de vários modos:
(i) seja através da sua expressa referência normativa para robustecer disciplinas legais relevantes – o que ocorreu no art. 73 da Lei de Responsabilidade Fiscal - LC nº 101/2000; 16
(ii) seja através da incorporação irrefletida de novos tipos gerais de improbidade administrativa inseridas na própria LGIA – artigo 10-A instituído casuisticamente pela Lei Complementar n 157/2016;17
(iii) seja através de acréscimos de novos tipos específicos na LGIA – incisos XIV e XV do artigo 10 pela Lei de Consórcios Públicos – Lei nº 11.107/2005, incisos XVI ao XXI do artigo 10, e inciso VIII do artigo 11, pela Lei de Parcerias com Organizações da Sociedade Civil, Lei nº 13.019/2014 (com alterações da Lei nº 13.204/2015)1, inciso IX do art.11, pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - Lei nº 13.146/2015, e inciso X do art.11, pela Lei nº 13.650/2018, relacionada com entidades beneficentes de assistência social, na área de saúde; 18
(iv) seja pela positivação de tipos (ou referências) isolados em leis específicas (artigo 30, parágrafo único, da Lei Geral de Telecomunicações – Lei nº 9.472/1997; artigo 59, parágrafo único da Lei da ANTT/ANTAQ – Lei nº 10.233/2001); mais recentemente, no artigo 29, §2º do Estatuto das Empresas Estatais - Lei nº 13.303/2016;19
(v) seja pela criação de sistemas especiais de atos de improbidade administrativa em domínios relevantes da atuação estatal (artigo 73, §7º da Lei das Eleições – Lei nº 9.504/1997, artigo 52 do Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257/2001, artigo 32 da Lei de Acesso à Informação Pública – Lei nº 12.527/2011, artigo 12 da Lei de Conflitos de Interesses – Lei nº 12.813/20132; art. 20 do Estatuto da Metrópole – Lei nº 13.089/2015 (este dispositivo subitamente revogado pela Lei nº 13.683/2018).20
O mais relevante é que a própria Constituição reconheceu a necessidade e relevância do sistema para a efetividade de seus mandamentos, ao estabelecer, através de Emendas, novas referências textuais à improbidade. Pode-se atestar nos seguintes artigos: artigo 97, § 10, inciso III, do ADCT, inserido por força da Emenda nº 62/2009, artigo 104, inciso II, do ADCT, inserido pela Emenda nº 94/2016, e artigo 101, § 3º, do ADCT, inserido pela Emenda nº 99/2017, todos relacionados com o cumprimento de normas constitucionais sobre precatórios (questão de indiscutível relevância institucional desde 1988), ressaltando e operando a tipicidade obrigatória de condutas no sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa.
Observe-se que o sistema de improbidade administrativa se tornou, ao longo dos últimos vinte e nove anos, o sistema central, de caráter não-penal, para robustecer o cumprimento e tutela da probidade como princípio basilar do direito público brasileiro, nos diversos campos da atividade estatal.
É certo que, no período de 2000-2013, a doutrina não vislumbrou as possíveis alterações no regime da improbidade com a vigência, no direito interno, das normas internalizadas de Convenções Internacionais na medida em que progressivamente foram incorporadas ao direito brasileiro. Talvez a razão principal desta ausência de reflexão sobre os efeitos das Convenções no campo da improbidade tenha sido a dificuldade em enquadrar o sistema inovador nas categorias tratadas nas Convenções, que seguem se reportando não raro à responsabilidade civil, penal e administrativa, merecendo também destaque o fato de que nestes anos o domínio de improbidade estava em plena luta pela sua identidade e sobrevivência institucional, no plano doméstico.
O STF reconheceu a inaplicabilidade do foro por prerrogativa de função no âmbito da improbidade administrativa, extirpando qualquer dúvida sobre a jurisdição cível na responsabilização.21 Na mesma trilha, o STF foi se afastamento do entendimento exarado na Reclamação nº 2.13822, em que excluiu Ministros de Estados (espécie de agente político) do campo da improbidade, sob a alegação de que o agente público responderia na forma da Lei nº 1.079/1950 (crimes de responsabilidade). O mesmo Excelso Tribunal foi consolidando a independência do sistema de improbidade, em face dos demais sistemas sancionadores.
Em 2013, com a Lei nº 12.846, fato é que o sistema de improbidade administrativa sofreu alteração geral substancial. A pesquisa do seu processo legislativo demonstra que, desde o início, a “Lei Anticorrupção” foi concebida como sistema em apartado da Lei nº 8.429/1992. A razão maior estaria na estrutura montada sobre a responsabilidade subjetiva e a concentração de competências para processar e julgar ilícitos na esfera do Poder Judiciário. A Lei nº 12.846 romper com isto, atribuindo relevante potestade sancionadora para a Administração Pública, e introduzindo a responsabilidade objetiva no DAS Anticorrupção. 23
Até a Lei nº 12.846, não havia uma legislação abrangente sobre a atuação ilícita de pessoas jurídicas no âmbito da jurisdição civil da improbidade e, neste aspecto essencial, a reforma da legislação foi acolhida, para reduzir os incentivos econômicos inerentes à ocorrência do fenômeno nas corporações.24 A Lei nº 8.429 foi claramente desenhada a partir de ilícitos funcionais de agentes públicos, mas disciplinou a responsabilidade de pessoas jurídicas. Não havia na LGIA uma disciplina detalhada e minimamente sistematizada para este tema específico.
A promulgação da Lei nº 12.846 exigiu o estudo da sua relação, em face da Lei nº 8.429, que já contempla a imputação de ilícitos em desfavor de pessoas jurídicas responsáveis em seu artigo 3º.
Tendo em vista os elementos componentes do sistema de responsabilização (bem jurídico, ilícito, sanção e processo), em vista do disposto no artigo 37, §4º da CF, não é possível negar o pertencimento da Lei nº 12.846 ao domínio da improbidade administrativa.25
Não procede a intentio legislatoris de estabelecer um novo sistema de responsabilização paralelo ao da LGIA, conforme preconiza o artigo 30 da Lei nº 12.846/2013. Deve prevalecer a força normativa da Constituição e a vontade constitucional expressada no artigo 37, parágrafo 4º da CF. A improbidade administrativa foi desenhada pela Constituição para a tutela da probidade, independentemente dos sujeitos passíveis de responsabilização. A União não tem atribuição de criar outro sistema para promover esta tutela. Está limitada pelo texto constitucional. Quailquer novas disposições devem ser interpretadas de forma sistemática e conforme à Constituição.
Mesmo que em diplomas legislativos diferentes, as normas da LGIA e da Lei nº 12.846 compõem o mesmo domínio punitivo. Esta lei também possui caráter geral na disciplina das pessoas jurídicas, sua temática específica. O maior desafio é explicar como se pode admitir a bifurcação da responsabilização, que foi estabelecida na LIPJ, inexistente na LGIA.
A “responsabilização administrativa” (art. 6º) e a “responsabilização judicial” (art. 19) da Lei nº 12.846/2013 devem ser interpretadas à luz do artigo 37, §4º da CF, fonte de legitimação constitucional desses atos legislativos.
Em rigor, todas as sanções da LIPJ são, em caráter definitivo, apreciáveis pelo Poder Judiciário, a quem compete processar e julgar a ação civil pública para sancionar os atos de improbidade, designados como “atos lesivos” no artigo 5º, conforme atribuição prevista no seu artigo 19.
A “responsabilização administrativa” tem ostensivo caráter pré-judicial e foi criada em face da modelagem do acordo de leniência (art. 16), concebido para alavancar a cooperação substancial (colaboração probatória) de PJs, e maior efetividade na detecção e repressão de atos de corrupção, pelo Estado (alavancagem investigativa)26
A “responsabilização administrativa” também encontra justificativa no impulso que o legislador outorga nos tempos atuais à necessária difusão de Programas de Integridade Anticorrupção, na medida em que, para sua configuração, avaliação e monitoramento, torna-se indiscutível a melhor alocação desta típica atribuição administrativa à capacidade institucional dos entes e órgãos da Administração Pública Direta e Indireta de todos os Poderes, nos diversos níveis da Federação Brasileira. A Convenção de Mérida conclama a atuação do setor privado no enfrentamento da corrupção.
A “responsabilização administrativa objetiva” foi perfilhada como instrumento não apenas de repressão adequada de práticas ilícitas imputáveis a pessoas jurídicas corruptoras ou beneficiárias, como também instrumento de fortalecimento da exigência de institucionalização adequada dos Programas de Integridade no seio destes sujeitos subordinados às potestades sancionadoras da Lei nº 12.846.
Tal como desenhada na Lei nº 12.846, na “intersecção” muito bem apontada por Ronaldo Pinheiro de Queiroz.27 a “responsabilização administrativa” está integralmente submetida ao escrutínio do Poder Judiciário, a quem a lei nacional reservou a atribuição para processar e julgar da “responsabilização judicial”, concretizando o princípio da inafastabilidade do exercício pleno da jurisdição civil na matéria, atendendo ao artigo 37, §4º da CF, que exige adequação no tratamento legislativo nacional do tema.
Tendo por objeto o mesmo escopo constitucional – tutela da probidade na organização do Estado em face de pessoas jurídicas privadas, a Lei nº 12.846 insere-se do domínio da improbidade, produzindo revogações da disciplina da Lei n. 8.429, que lhe é contrária.28
A responsabilidade por atos de improbidade administrativa integra as engrenagens do Direito Administrativo Sancionador, respondendo inclusive pelo seu contínuo e progressivo crescimento na arena jurídica, ao longo da vigência da atual Constituição.
Desde a atual Constituição,29 30 esta ramificação do Direito Administrativo tem progressivamente recebido atenção científica, doutrinária, legislativa e jurisprudencial, seguindo uma evolução constante em termos de aperfeiçoamentos institucionais de suas estruturas, de seus institutos, de sua principiologia, mesmo que ainda na atualidade haja ou permaneçam inúmeras e intensas controvérsias no seio da análise desta parcela do Direito Administrativo.
O ordenamento brasileiro conta com avanços significativos em termos de Direito Administrativo Sancionador.31 Se fosse categorizar dimensões desta trajetória evolutiva, seria possível indicar ou sintetizar, a largos passos, as seguintes vertentes de desenvolvimento do DAS que lhe dá a relevância atual:
1ª) O desenvolvimento de limites constitucionais às potestades sancionadoras, no estudo aprofundado da incidência dos direitos e garantias fundamentais na matéria, na qual a produção teórica-científica examina os limites da aplicabilidade de princípios e garantias constitucionais no campo do DAS 32;
2ª) O desenvolvimento das potestades sancionadoras no espectro da atividade regulatória, na qual a produção jurídica se volta para o estudo das competências sancionadoras atribuídas às denominadas “agências reguladoras” (pós-1995), com grande destaque ao tema da consensualidade no exercício das referidas atribuições33;
3ª ) O fortalecimento de Tribunais de Contas, no exercício do controle externo (artigo 71 CF), com atribuições de potestades sancionadoras34 35
4ª) A criação de potestades sancionadoras para tutela da probidade na organização do Estado, através do sistema de improbidade administrativa (artigo 37, §4º da CF), 36como integrante do Sistema Brasileiro Anticorrupção; e
5ª) A compreensão de normas de DAS, a partir do pensamento pragmático e consequencialista.37 O pragmatismo e o consequencialismo fortalece a visão dogmática de que as competências sancionadoras não são um fim em si mesmo.38 Constituem fundamentalmente como instrumento para atingir a prevenção e dissuasão de ilícitos. A imposição unilateral de sanções deixam de ter um papel predominante nos modelos sancionadores concebidos para tutela de interesses públicos. A consensualidade ganha crescente tratamento dogmático39 e normativo.
Reputam-se estes cinco vetores como dimensões do processo normativo em evolução, porque constituem movimentos paralelos ou concomitantes, que desembocam na realidade do Direito Administrativo Sancionador Brasileiro atual, extremamente heterogêneo, nos diversos campos materiais que incide, nas diversas Instituições de Estado que o aplicam, nas diversas funcionalidades que ostentam os modelos sancionadores por ele abrangidos.
A improbidade administrativa tornou-se capítulo fundamental do Direito Administrativo Sancionador anticorrupção, como parcela normativa componente do Sistema Brasileiro Anticorrupção.
A prática de corrupção “solapa a legitimidade das instituições públicas e atenta contra a sociedade, a ordem moral e a justiça, bem como contra o desenvolvimento integral dos povos”. “A democracia representativa, condição indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região, exige, por sua própria natureza, o combate a toda forma de corrupção no exercício das funções públicas e aos atos de corrupção especificamente vinculados a seu exercício”. “O combate à corrupção reforça as instituições democráticas e evita distorções na economia, vícios na gestão pública e deterioração da moral social”. “A corrupção é um dos instrumentos de que se serve o crime organizado para concretizar os seus fins”, havendo crescentes “vínculos cada vez mais estreitos entre a corrupção e as receitas do tráfico ilícito de entorpecentes, que ameaçam e corroem as atividades comerciais e financeiras legítimas e a sociedade, em todos os níveis”. É imperativo gerar entre a população “uma consciência em relação à existência e à gravidade desse problema e da necessidade de reforçar a participação da sociedade civil na prevenção e na luta contra a corrupção”.
Acima estão todas justificativas apontadas na Convenção da OEA contra a Corrupção, e todas estas circunstâncias fáticas seguem firmes e presentes na realidade brasileira, tornando-se inequivocamente substrato para valorações dentro da nossa ordenação constitucional, na interpretação da produção legislativa. Pelas mesmas razões, desponta a relevância do projeto de lei de revisão da LGIA em curso.
3 Aspectos críticos do Projeto de Lei do Senado nº 2505/2021.
A abordagem dos fundamentos e evolução do sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa bem revela a relevância constitucional de sua identidade no Sistema Brasileiro Anticorrupção, na tutela da probidade na organização do Estado. Ao longo do seu tempo de vigência, inúmeros aperfeiçoamentos normativos foram realizados por obra da doutrina e jurisprudência, com destaque para a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça, guardiã da uniformidade aplicativa da legislação federal40.
Até 2018, o próprio legislador foi muito cauteloso nas alterações de direito processual e material na lei geral. Pode-se mesmo apontar uma cautela extremada, quando se apura a aprovação da Lei nº 12.846/2013, com dispositivo (art. 30) que buscou, em sua literalidade, deixar intocadas as regras sobre a improbidade de pessoas jurídicas contidas na Lei nº 8.429/1992. Esta mesma cuidadosa abordagem também estava presente no Projeto de Lei, em sua versão originária (PL nº 10.887/2018), que corresponde ao resultado da proposta da Comissão criada em fevereiro de 2018 pelo Presidente da Câmara dos Deputados, e presidida pelo Ministro do STJ Mauro Campbell Marques.
O projeto originário buscava só atualizar a lei geral de improbidade administrativa, sem desnaturar os elementos essenciais (bem jurídico, ilícito, sanções e processo) do sistema de responsabilização instituído pela Constituição. O objetivo era compatibilizar a legislação de improbidade às alterações normativas ocorridas no Sistema Brasileiro Anticorrupção, bem como à evolução jurisprudencial na matéria.
A versão aprovada e encaminhada em junho/2021 pela Câmara dos Deputados ao Senado Federal, todavia, engendra, em rigor, alterações substanciais no sistema de improbidade administrativa. Dada a profundidade das mudanças legislativas, está sob apreciação do Senado Federal uma “nova LGIA” (e não mera revisão da anterior), o que por si só exigiria um debate mais intenso e extenso sobre o conteúdo das novas disposições, realizável somente fora do contexto de anormalidade imposto pela pandemia do Covid-19.
Utilizando-se como parâmetros estas quatro perspectivas (bem jurídico, ilícito, sanção e processo), a seguir são alinhavadas críticas a regramentos da proposta legislativa, que acabam por fragilizar a tutela cível do interesse público anticorrupção. A presente abordagem não esgota as críticas do autor à formulação legislativa.
3.1 Alterações subjacentes ao bem jurídico protegido.
A atual lei de improbidade administrativa depurou a tutela da probidade na organização do Estado em três vetores fundamentais: (i) tutela da honestidade; (ii) tutela do zelo ao Erário Público; e (iii) tutela da legalidade, imparcialidade e lealdade institucional. Correspondem a atual forma legal de tipificação de atos de improbidade, em três categorias: (i) Atos de Improbidade Administrativa que Importam Enriquecimento Ilícito (artigo 9º); (ii) Atos de Improbidade Administrativa que Causam Prejuízo ao Erário (artigo 10 e 10-A); e Atos de Improbidade Administrativa que Atentam Contra os Princípios da Administração Pública (artigo 11).
Esta forma de decomposição do bem jurídico é uma exigência constitucional, porque a CF protegeu a probidade para além do enfrentamento a casos de enriquecimento ilícito e de dano ao erário público, já conhecidos pelo direito brasileiro desde os anos 50 (Lei Pitombo-Godói Ilha e Lei Bilac-Pinto).41 A refundação da República e seu arcabouço jurídico no Estado Democrático de Direito, após a Ditadura Militar, conduziu a esta ampliação de tutela do bem jurídico, considerando a dimensão e efeitos de práticas de corrupção no aparelho do Estado brasileiro.
Em face das proposições normativas, colhidas no PLS 2505/2021, percebe-se que:
(i) a tipologia do enriquecimento ilícito por aquisição de patrimônio desproporcional (artigo 9º, inciso VII, da LGIA) restará envaziado, com a exigência de demonstração de vínculo do acréscimo patrimonial ilícito com o exercício da função pública, identificando ato ou omissão praticado “em razão da” função pública.
Sabe-se que práticas de corrupção são clandestinas e ocultadas para que grasse a impunidade de agentes públicos e terceiros (pessoas físicas e jurídicas) envolvidos na improbidade administrativa. O descompasso objetivo entre a remuneração do agente público e seu patrimônio é demonstrativo de enriquecimento obtido na mercantilização do seu exercício funcional.
A ostentação de patrimônio desproporcional ilícito por agentes públicos é forma tipológica de corrupção, contra a qual se insurgem as Convenções Internacionais da OEA e da ONU. Nelas são acolhidas a tipologia, hoje descrita no atual artigo 9º, inciso VII.
Com a proposta debatida, perde-se a tutela da honestidade patrimonial ou honorabilidade remuneratória perseguida pela Lei, em atendimento à Constituição Federal e Convenções Internacionais.42
(ii) a tipologia da improbidade que lesa o erário público também será reduzida, com a injustificada extirpação da modalidade culposa de improbidade administrativa, hoje positivada no artigo 10 da LGIA.
A Constituição protege o erário público, de forma ampla, com a previsão do ressarcimento de dano ao erário (artigo 37, §4º), avançando na proteção do patrimônio público. A atual LGIA supera as limitações próprias das legislações por ela revogadas, que só secundariamente vinculavam corrupção e práticas danosas ao erário, exigindo-se o ressarcimento.
Esta responsabilização na improbidade por atos dolosos e culposos que agridem o erário se coaduna com a previsão ampla de responsabilidade extrapatrimonial do Estado, por atuações dolosas e culposas de agentes públicos, nos termos do artigo 37, §6º.
Com a proposta em discussão, haverá revogação de forma culposa no cometimento de atos ímprobos, debilitando a tutela do bem jurídico, sem que tenha havido qualquer alteração fática ou normativa significativa no ordenamento brasileiro em sua proteção conferida ao erário, a justificar o tratamento mais benéfico.
(iii) a tipologia de improbidade que atenta contra a honestidade, legalidade, imparcialidade e lealdade institucional será profundamente afetada, com a injustificada restrição desta modalidade de atos ímprobos a suposto rol taxativo, do qual se propugna expressamente retirar, dentre outros, o desvio de finalidade (artigo 11, inciso I, da LGIA).
O tipo atual (artigo 11) dá conta da ampla proteção da probidade em situação ilícitas que não geram o resultado do enriquecimento ou do prejuízo ao erário. Já se consolidou o entendimento de que nele não se enquadra a mera ilegalidade, mas ilegalidade qualificada pelo atentado aos valores éticos juridicizados no tipo.
A tutela constitucional da probidade não se encerra na proteção da honestidade funcional e do zelo ao erário. No marco do Estado Democrático, a improbidade traz a marca de grave atentado a valores éticos juridicizados e alocados na base da organização do Estado, e do exercício de suas atribuições, na persecução dos interesses públicos.
A definição de prática de corrupção há muito não se restringe a hipóteses de suborno e prejuízos ao erário. As Convenções da OEA e da ONU admitem expressamente práticas corruptivas, sem ocorrência destes resultados na prática ilícita. A última Convenção categoriza, de forma ímpar, o denominado abuso de funções (Artigo 19), revelando que a definição de corrupção na contemporaneidade deve ser buscada na conduta funcional íntegra. Com razão, a Convenção usa o conceito de integridade como referência semântica ampla, como o faz a Constituição Brasileira com o conceito de probidade.
A proposta segue em linha diametralmente oposta. Sob a justificativa de que o texto do atual artigo 11 é demasiadamente indeterminado – como se isto não resultasse da própria Constituição Federal – propugna-se por rol tímido de hipóteses de ofensas que seriam passíveis de enquadramento taxativo como improbidade.
Registre-se que, em 2020, no primeiro substitutivo ao projeto originário, houve cogitação de revogação total do artigo 11 da LGIA.43 Em relação a isto, a proposta mantém o artigo 11, mas acaba por restringir injustificadamente a tutela da probidade perseguida pela sua positividade, retrocedendo no enfrentamento de práticas nefastas de patrimonialismo, clientelismo, nepotismo, favoritismo e outras mazelas ético-jurídicas gravíssimas que vicejam no aparelho do Estado. A revogação total significa um retorno puro e simples (e inadmissível) aos anos 50. A taxatividade é possível, desde que estabelecidos tipos que não reduzam a funcionalidade do dispositivo, à luz da Constituição.
É fundamental assinalar que imparcialidade e lealdade no exercício funcional de agentes públicos são valores constitucionalizados na observância principiológica da probidade, essenciais à fidelidade ou ao compromisso funcional exigível de quaisquer agentes que atuam em prol de interesses públicos. Da mesma forma, honestidade como exigência de veracidade. Os incisos que permanecem na proposta legislativa seguem com este lastro constitucional.
“Caracterizar” estas ilicitudes não retira o caráter tipificatório do caput, porque ungido da Constituição. Não é dado ao legislador conferir uma proteção deficiente ou inadequada à totalidade de bens jurídicos reconduzíveis à probidade na organização do Estado, ou à integridade, na dicção de Mérida. Eliminar a indeterminação semântica do artigo 11 é inviável do ponto de vista da Lei Maior. Somente se justifica na má compreensão da função da segurança jurídica no Estado Material de Direito pós-moderno.
Isto se torna patente com a equivocada proposta de revogação do desvio de finalidade, tipo de ilicitude já esquadrinhada por doutrina e jurisprudência (incluindo legislação, Lei nº 4.717/1965, em seu artigo 2º, alínea “e”), e que não se imagina como deixará de ser hipótese de improbidade.
Uma possível delimitação mais densa da categoria de atos de improbidade, previstos no artigo 11, já ocorreria com a expressa circunstância de que a conduta funcional ilícita devem ser praticada “com o fim de obter um benefício indevido para si mesmo ou para outra pessoa ou entidade”, como está na Convenção de Mérida.
Em vez de limitar o rol do artigo 11, está o legislador perdendo uma oportunidade de ampliá-lo, esmiuçando ilicitudes que escapam da atual redação do dispositivo, como, por exemplo, situações intoleráveis de conflito de interesses (hoje incluídas na Lei nº 12.813/2013), situações graves de descumprimento do direito à informação pública (hoje incluídas na Lei nº 12.527/2011). Nesta linha, comemora-se a introdução tardia do nepotismo, na versão dada pela Súmula Vinculante STF nº 13, como ato de improbidade.
Veja-se que a nova hipótese do artigo 11, inciso XII, relativa à promoção pessoal de agentes públicos com recursos do erário, não é admissível no aludido rol, e deverá ser realocado no artigo 10. Trata-se de outro caso que, a pretexto de aperfeiçoar o regramento, distorce a sua funcionalidade, que não abrange mitigar sanções para esta típica violação do erário.
3.2 Alterações subjacentes ao ilícito
É visível que a Lei nº 8.429/1992 foi buscar inspiração no modelo utilizado na Lei da Ação Popular, para moldar a técnica legislativa que estrutura o sistema de responsabilização nela configurado. Assim é que inicia com o rol de “sujeitos passivos” (art. 1º) - entidades públicas e privadas tuteladas pela lei, continua com a definição dos possíveis “sujeitos ativos” (art. 2º) - pessoas físicas e jurídicas a quem se pode imputar responsabilidade, e segue com a conformação tipológica dos atos de improbidade, nas três categorias conhecidas (artigos 9º ao 11), às quais comina as correlatas sanções (art. 12). Na sua aplicação, avaliam-se a tipificação objetiva (formal e material) e subjetiva, inerente ao tipo infracional aplicado. Este é o caminha para se aportar no ilícito.
Sobre este processo de tipificação, em perspectiva crítica, importante destacar que:
(i) as formas de imputação de responsabilidade de pessoa jurídica e de pessoas físicas a ela vinculadas (sócios, cotistas, diretores e “colaboradores”) tornam-se acentuadamente e injustificadamente restritivas, dificultando a atribuição de responsabilidade para terceiros envolvidos (e comumente beneficiários) na prática da improbidade administrativa.
A redação atual do artigo 3º da LGIA – que é a fonte de responsabilização de terceiros envolvidos na improbidade – está revogada, no tocante às pessoas jurídicas, vez que o artigo 2º da Lei nº 12.846 estabeleceu a responsabilidade objetiva destes sujeitos de direito, derrogando a responsabilidade subjetiva. Em rigor, o referido dispositivo já caminhava nesta direção, quando tipifica a conduta de induzir, concorrer e beneficiar-se no contexto da prática ímproba. No entanto, a jurisprudência no STJ se consolidou em prol da responsabilidade subjetiva, com apoio doutrinário majoritário.
A proposição legislativa, em vez de sepultar a responsabilidade subjetiva, espraiando e consolidando expressamente a responsabilidade objetiva de pessoas jurídicas, segue na contramão do aperfeiçoamento necessário neste regime, tornando extremamente embaraçosa a imputação de responsabilidade.
Na redação proposta (novo artigo 3º), desaparece a conduta de terceiro que se beneficia de forma direta ou indireta, o que já implica uma injustificada limitação no âmbito da responsabilização de terceiros. Demais disso, “sócios, cotistas, diretores e colaboradores” de pessoas jurídicas só respondem por ato de improbidade imputado à pessoa jurídica, “se comprovadamente, houver participação e benefícios diretos”, o que não é compatível sequer com a Lei nº 12.846, que autoriza responsabilização “na medida de sua culpabilidade” (art. 3º).
Estas duas alterações atingem, no coração, o regime de responsabilização de pessoas jurídicas – as recorrentes beneficiárias de práticas de corrupção -, permanecendo nele apenas hipóteses ostensivas de envolvimento de pessoas jurídicas na corrupção (indução e participação), e, mesmo nestes casos, somente será possível estender a responsabilização para pessoas físicas vinculadas se houver comprovação de “benefício pessoal”. Hipóteses não raras de ocultação da forma como uma pessoa jurídica (e seus prepostos) está vinculada à determinada prática corrupção são simplesmente ignoradas. Certamente que estes comandos implicarão em blindagem de pessoas jurídicas (e seus prepostos), na medida em que o nível de elementos exigidos (com reflexos probatórios) para a imputação jurídica revela-se desproporcional.
Não se olvide que o Estado Brasileiro se comprometeu, na convenção de Mérida (Artigo 26), adotar “as medidas que sejam necessárias, em consonância com seus princípios jurídicos, a fim de estabelecer a responsabilidade de pessoas jurídicas por sua participação nos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção”. sendo que, “sujeita aos princípios jurídicos do Estado Parte, a responsabilidade das pessoas jurídicas poderá ser de índole penal, civil ou administrativa”.
A responsabilidade por ato de improbidade administrativa é concretizada mediante ação civil pública processada e julgada perante o juiz cível competente (federal ou estadual), e estudada no bojo do Direito Administrativo Sancionador. Não pode o legislador desconstruir o sistema de imputação de pessoas jurídicas, dificultando o cumprimento da finalidade preventiva, dissuasória e punitiva da responsabilidade.
Internalizada também no direito brasileiro, a Convenção da OCDE inclusive impede que “considerações de interesse econômico nacional” interfira na investigação e abertura de processos por corrupção (Artigo 4º), sendo que postula dos Estados que tomem “todas as medidas necessárias ao estabelecimento das responsabilidades de pessoas jurídicas por corrupção” (Artigo 2º).
(ii) A nova correlação das sanções legais impostas em face de cada categoria de improbidade administrativa conduz a afirmar que, na futura lei, estará sendo criada uma categoria inferior de improbidade, que, mesmo rotulada como tal, não ensejará – sequer in abstracto - as penalidades constitucionais de perda da função pública (para agentes públicos) e suspensão de direitos políticos (para quaisquer pessoas físicas, exceto estrangeiros), na medida em que foi alterada a relação existente entre ilícitos e sanções, nos termos do novo artigo 12, no PLS 2505/2021.
Sabe-se que as engrenagens punitivas da Lei nº 8.429/1992 foram e continuam erigidas com base em blocos sancionatórios, previstos no seu artigo 12, incisos I ao IV, conforme a categorização do ilícito. Esta técnica legislativa gerou infinitas controvérsias sobre a necessária observância do princípio da proporcionalidade na aplicação da lei. A jurisprudência do STJ consagrou a tese de ampla admissibilidade do juízo de proporcionalidade, depois agasalhada no artigo 12, caput, pela Lei nº 12.120/2009. De qualquer forma, não há ato de improbidade, que não possa deixar de irradiar as consequências sancionatórias constitucionais, no sistema atual.
A proposição legislativa, sob o argumento da proporcionalidade e de segurana jurídica, postula uma alteração inadmissível, quando termina por rebaixar o grau de censurabilidade constitucional do ato de improbidade, desvinculando-o de seu perfil sancionatório, tal qual desenhado no Texto Maior. Veja-se que, além de tentar o inviável (tipificar sem indeterminação), o artigo 11 é privilegiado, pelas reduzidas sanções impostas.
É verdade que a proposição legislativa acerta em consignar o ato de improbidade de menor ofensividade aos bens jurídicos (novo artigo 12, §5º). Da mesma forma, era necessário ter um rol de critérios de fixação das sanções legais, conferindo maior eficácia à individualização no campo sancionador, o que se inscreve no novo artigo 17-C, inciso IV. Todavia, não é possível que a obra legislativa venha a descaracterizar o ato de improbidade, no tocante à repercussão constitucional exarada para sua prática. O PLS 2505/2021 faz isto, ao extirpar sanções constitucionais para hipóteses do novo artigo 11.
Ofender, de forma dolosa ou intencional, os deveres de honestidade, legalidade e imparcialidade (na versão do PLS), com fim ilícito de obter um benefício indevido para si mesmo ou para outra pessoa ou entidade, continua sendo conduta funcional gravíssima – mesmo nas hipóteses restritas do PLS - sob o ponto de vistas da probidade constitucional, e não há justificativa axiológica para a distinção de tratamento legal.
3.3 Alterações subjacentes à sanção
Como visto acima, a improbidade administrativa não ostenta caráter penal, por expressa dicção do artigo 37, §4º, in fine, da Constituição. Ao tratar de responsabilização de agentes públicos, sua análise científica está regularmente inscrita no Direito Administrativo. Em particular, por se tratar de regime público sancionador, a improbidade integra os sistemas de responsabilização próprios do Direito Administrativo Sancionador, que, no Brasil, não se limita às sanções editadas por órgãos ou entidades da Administração Pública do Poder Executivo, ou por órgãos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, no exercício de função administrativa. 44
No cenário atual do DAS Brasileiro, afirma-se progressivamente a finalidade pública da prevenção (geral e especial) e dissuasão, como interesses públicos que devem nortear o exercício de potestades sancionadoras. O que molda o DAS é, primariamente, sua funcionalidade dirigida a tutela de interesses públicos, e, secundariamente, sua função de promover punição, de caráter retributivo, em face de ilícitos. Por outro lado, a lógica inversa é a mola propulsora do jus puniendi, no campo do Direito Penal.
Disso resulta que, no DAS, o legislador não pode afastar-se do imperativo de criar ou adotar modelos sancionadores eficientes, proporcionais e racionais, desenhando-os com equilíbrio, incluindo na sua avaliação a tutela de direitos fundamentais dos acusados. Esta diretriz retira a legitimidade de arquitetar sistemas estéreis e disfuncionais que só alimentem impunidade, recheados com mero punitivismo simbólico.
Sobre as alterações propostas pelo PLS, relativamente às sanções de improbidade administrativa, merecem relevo as seguintes críticas:
(i) O aumento desproporcional do prazo da penalidade de suspensão de direitos políticos. No atual sistema, estão vigentes os seguintes prazos: artigo 9º, oito a dez anos; artigo 10 e 10-A, cinco a oito anos; artigo 11, três a cinco anos. Na proposição legislativa, os prazos punitivos são elevados conforme a seguinte escala: artigo 9º, até 14 anos; artigo 10, até 12 anos; artigo 11, exclusão da penalidade.
A reforma proposta consegue algo inédito: mostrar que existe proporcionalidade no sistema atual, e que, para mostrar maior severidade, as penalidades estão sendo aumentadas, o que atenderia, em visão simbólica, o interesse público anticorrupção. Em verdade, adota-se uma postura punitivista disfuncional, pois in abstrato observa-se que foram retirados tetos mínimos nas sanções impostas às categorias do artigo 9º e 10, e foi eliminada a sanção no caso de conduta ímproba do artigo 11, cuja gravidade exige a presença da mesma.
A anomalia também está plantada com o elevado grau de margem de valoração outorgado na imposição da sanção, a gerar significativa e intolerável problemas de real segurança jurídica na sua aplicação concreta, que não será resolvido com a previsão minudente de critérios de individualização das sanções.
(ii) a redução disfuncional da sanção de multa civil, em todas as categorias de improbidade. No sistema atual, os parâmetros são: artigo 9º, multa de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial; artigo 10, multa civil de até duas vezes o valor do dano; artigo 10-A, multa civil de até 3 (três) vezes o valor do benefício financeiro ou tributário concedido; e artigo 11, multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente. Na proposta aprovada na Câmara dos Deputados, as multas observarão o seguinte parâmetro: artigo 9º, multa civil equivalente ao valor do acréscimo patrimonial; artigo 10, multa civil equivalente ao valor do dano; artigo 11, multa civil de até 24 (vinte e quatro) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente.
Também se atribui relevante margem de valoração ao juiz competente, para o aumento da multa, “até o dobro”, quando, em vista da situação econômica do réu, o valor for ineficaz para reprovação e prevenção do ato de improbidade (novo artigo 12, §2º).
A sanção de multa civil (designada como tal para afastar totalmente sua confusão com a multa penal) possui relevante função inibitória, preventiva ou dissuasória. Basta registrar que na Lei nº 12.846, a previsão de multa incide no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação. Caso não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais).
Seja para pessoas físicas, seja para pessoas jurídicas, esta comparação anuncia o agravamento da irracionalidade dos parâmetros da multa no sistema da improbidade administrativa (Lei nº 8.429 e Lei nº 12.846), se aprovados as regras sobre a multa civil. Cabe à lei (e não ao juiz) estipular tetos mínimos e máximos para “reprovação e prevenção do ato de improbidade”, por força do princípio da tipicidade. Se dobrados os valores, mesmo assim continuará o déficit na sua funcionalidade.
Interessante perceber que, mesmo excluída as sanções de perda da função pública e de suspensão de direitos políticos, os atos de improbidade que agridem a honestidade, legalidade e imparcialidade (novo artigo 11) não foram punidos com multa com valores adequados, reduzindo quase pela metade o teto máximo em vigor.
Da mesma forma, segue totalmente deficiente o tratamento conferido à multa aplicável às pessoas jurídicas envolvidas na prática da improbidade administrativa. O PLS, como visto, já favoreceu estes sujeitos de direito com restrições na imputação de responsabilidade. O tratamento benéfico não para nisto. Se responsabilizada, não há definição racional e congruente de parâmetros de multa civil para a pessoa jurídica. Restará os parâmetros de dosimetria da Lei nº 12.846 (artigo 7º), que, todavia, segue apartada da lei geral.
(iii) a disciplina disfuncional da proibição de contratar com o poder público. No sistema em vigor, esta interdição de direito já está marcada pelo signo da disfuncionalidade. Primeiro, os patamares fixos previstos (artigo 9º, dez anos; artigo 10, cinco anos; artigo 11, três anos), exigem recurso ao princípio da proporcionalidade para o devido ajustamento nos casos concretos. Segundo, a abrangência geral da proibição para o “Poder Público” também não sofreu nenhuma modulação, sendo recentemente reinterpretada no âmbito da Egrégia 2ª Turma do STJ.45 Terceiro, não há previsão legal de cadastro para dar publicidade adequada ao cumprimento da sanção, em todos os níveis federativos.
Somente na Lei nº 12.846/2013 foi legalmente institucionalizado o CEIS – Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas, a que alude o novo artigo 12, §8º. Desde 2007, através da Resolução nº 44/2007, o Conselho Nacional de Justiça criou o Cadastro Nacional de Condenados por Ato de Improbidade Administrativa e por Ato que implique Inelegibilidade – CNCIAI. Trata-se do único sistema abrangente de publicação nacional de sanções objeto de condenação judicial, com amparo na Lei nº 8.429/1992.
O modelo proposto pelo PLS não oferece a melhor solução para as deficiências atuais. Ofende o princípio da tipicidade, porque deixa ao órgão de aplicação da lei a possibilidade de delimitação subjetiva da proibição (artigo 12, §4º), para além do “ente público lesado pelo ato de improbidade”.
A margem de valoração judicial vem em detrimento da segurança jurídica. Da mesma forma, cria-se uma dubiedade extrema em situações em que atos de improbidade lesam entidades governamentais da Administração Indireta, que não se confundem com os entes públicos, ambos tutelados pela lei. Por fim, a possibilidade de “extrapolar o ente público lesado” também não encontra limitação objetiva, desconhecendo-se previamente os limites desta “extrapolação”.
O modelo proposto também é irracional na fixação dos prazos máximos da sanção: artigo 9º, prazo não superior a catorze anos; artigo 10, prazo não superior a doze anos; e artigo 11, prazo não superior a quatro anos. Veja-se a incongruência progressiva nos limites temporais, e não estabelecimento de tetos mínimos, alimentando a imprevisibilidade da sanção.
Do mesmo modo, no conjunto das sanções, resta inexplicável que, no caso de improbidade tipificada no artigo 11, o agente público não sofrerá a perda da função pública, mas pessoa jurídica responsabilizada na improbidade seja punida com as interdições de direito previstas. Atenta-se contra a racionalidade interna do modelo, em sua função dissuasória.
O resultado da proposição legislativa, relativamente à proibição de contratar com o Poder Público, só sinaliza para novos e maiores deficiências no modelo sancionador, a gerar inequivocamente ineficiência na tutela da probidade constitucional.
(iv) a manutenção da inefetividade da proibição de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, contratar com o poder público.
É conhecida a dificuldade, senão inviabilidade, de se conferir plena efetividade à proibição ora apreciada como sanção por ato de improbidade administrativa. Tanto o CNCIAI, quanto o CEIS, não oferecem segurança como instrumentos institucionais para dar efetividade ao cumprimento das referidas interdições. Esta situação foi muito bem pontuada por, Alexandre Amaral Gavronski, em Manual e Roteiro de Atuação, publicado pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério |Público Federal. 46
Encontrando-se a lei geral sob nova avaliação legislativa, era de se esperar algum tipo de avanço nesta matéria, de elevada repercussão destacadamente para as pessoas jurídicas. Todavia, nem o Projeto de Lei originário, tampouco o Projeto aprovado na Câmara não oferecem avanços nesta grave deficiência sancionatória.
3.4 Alterações subjacentes ao processo
Como vista acima, a Constituição estabeleceu o sistema de improbidade administrativa, cujos provimentos sancionatórios unilaterais exigem condenação judicial, pelo juiz competente em primeira instância (federal ou estadual). Esta demanda judicial é posta em movimento através de uma ação civil pública, com escopo sancionatório singular: a ação de improbidade administrativa.
Na atual compostura, a legitimação ativa para propositura desta ação civil pública é disjuntiva e concorrente, compartilhando-se entre o Ministério Público competente e “pessoa jurídica interessada”, na dicção do artigo 17 da Lei nº 8.429/1992.
De um lado, Instituição com autonomia constitucional, cabe ao Ministério Público a tutela do patrimônio público e social, nos termos do artigo 129, inciso III, da CF, donde inequivocamente se legitima a atribuição de sua legitimação ativa na improbidade. De outro, entes públicos e governamentais tem o dever de promover a proteção do patrimônio público, nos termos do artigo 23, inciso I, da CF, encontrando-se a Administração Pública submetida aos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, eficiência e publicidade (art. 37, caput). Ao nosso parecer, a representação judicial de entes públicos e governamentais está a cargo da Advocacia Pública (artigos 131 e 132 da CF), outra Instituição republicana que, por conseguinte, também ostenta legitimação ativa para demandas de improbidade.
Sabe-se que a atual Lei nº 8.429/1992 trata, de forma igualmente deficiente, de questões processuais da ação civil pública de improbidade administrativa, exigindo aplicação subsidiária seja da Lei nº 7.347/1985 (LACP), seja do próprio Código de Processo Civil.
Sobre a vertente do processo como elemento estruturante do sistema de responsabilização, merecem destaque os seguintes apontamentos:
(i) Não está adequadamente resolvida a relação entre a Lei de Improbidade e a Lei nº 12.846. No momento atual, esta última contem dispositivo que simplesmente preceitua que a aplicação de suas sanções “não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades” decorrentes de ato de improbidade administrativa. A literalidade da Lei nº 12.846, como dito antes, sinaliza pela criação de novo sistema de responsabilização, próprio para pessoas jurídicas, por “atos lesivos”, com caráter autônomo, em face de todos os demais sistemas ou instâncias incidentes sobre os mesmos fatos ilícitos nela previstos (artigo 5º).
No PLS 2505/2021, o artigo 3º, §2º estabelece que “as sanções desta Lei não se aplicarão à pessoa jurídica, caso o ato de improbidade administrativa seja também sancionado como ato lesivo à administração pública”. Mais adiante, o artigo 12, §7º, preceitua que “as sanções aplicadas a pessoas jurídicas com base nesta Lei e na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, deverão observar o princípio constitucional do non bis in idem.” Os comandos estão contraditórios, ora negando aplicação cumulativa, ora admitindo-a com observância do non bis in idem.
É fundamental que a reforma legal caminhe para reconhecer o mesmo fundamento constitucional da Lei nº 8.429 (Lei Geral de Improbidade Administrativa) e da Lei nº 12846 (em rigor, Lei de Improbidade de Pessoas Jurídicas). A referência à aplicação do princípio constitucional de vedação ao bis in idem (corolário do devido processo legal substantivo e adjetivo) pressupõe que se esteja a tratar do exercício da mesma potestade sancionadora estatal, pela identidade de potestade sancionadora estatal.
Da proposição legislativa extrai-se que a defesa injustificada da responsabilidade subjetiva para pessoas jurídicas na Lei nº 8.429 seria o obstáculo principal para se chegar a esta sistematicidade normativa neste segmento do DAS Anticorrupção. Todavia, a Lei nº 12.846 já deixou para o passado o critério de subjetivização, e já introduziu o critério de objetivização da responsabilidade de entes morais. Não é possível que isto ocorra para as pessoas físicas, por razões fundamentais de dignidade humana, devido processo legal e culpabilidade. Todavia, não ha mais fundamentação constitucional valida para manter esta duplicidade de tratamento das PJs.
O próprio PLS traz para o bojo da futura (e nova) Lei Geral de Improbidade Administrativa dispositivos consagrados na Lei nº 12.846, a exemplo da “responsabilidade sucessória' (novo artigo 8º-A), da relevância dos programas de integridade (novo artigo 17-B, §6º),4748 do regramento do termo inicial de prescrição da pretensão punitiva (novo artigo 23). Mas ficou aquém das medidas adequadas e necessárias à tutela do interesse público anticorrupção, quando não prevê a responsabilidade entre sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, sociedades consorciadas (cf. art. 4º, §2º da Lei nº 12.846) e quando não agasalhou o instituto do Acordo de Leniência (cf. art. 16 da Lei nº 12.846) no bojo da nova legislação geral.
Esta ausência de tratamento legal congruente entre a Lei Geral de Improbidade Administrativa e a Lei de Improbidade das Pessoas Jurídicas permanece e se grava na atual proposição do PLS, que, analisado no todo, pende para a caminho atual de segregação, e não de sistematização dos regimes, o que efetivamente tutelaria o interesse público anticorrupção.
Além de não revolver a relação internormativa retromencionada, o PLS ainda suscita dúvida sobre a relação deveras consolidada entre a Lei nº 8.429/1992 (tutela coletiva especial) e a Lei da ACP (tutela coletiva geral), o que exige seja explicitado no texto legal. Probidade é bem jurídico metaindividual, cuja proteção se insere, de modo legítimo, no figurino da ação civil pública.
(ii) Não estão postos, de forma adequada e suficiente, os fundamentos e modalidades de consensualidade que pode ser utilizada no regime da improbidade administrativa. O PLS não oferece uma solução que promova previsibilidade às hipóteses de consensualização, e ignora o instituto do acordo de leniência, atualmente já consolidado na Lei nº 12.846.
A admissão de consensualidade no domínio atual da improbidade administrativa possui três marcos temporais: a Lei nº 12.846/2013, com a previsão de celebração de Acordos de Leniência (artigo 16); a Resolução CNMP nº 179/2017, com a previsão de celebração de Termos de Ajustamento de Conduta (artigo 1º, §2º),49 e a recente Lei nº 13.964/2019, com a previsão de celebração de Acordo de Não Persecução Cível (na nova redação do atual artigo 17, §1º) e solução consensual após a propositura da ação (novo artigo 17, §10-A). Nos dois primeiros casos, consensualização fruto de interpretação sistemática do Sistema Brasileiro Anticorrupção (ou, Microssistema de tutela coletiva da probidade). No último caso, reconhecimento legislativo específico na lei geral da matéria, com ocorrência de veto presidencial às normas de detalhamento do ANPC.
A proposição legislativa em curso segue na melhor delimitação do Acordo de Não Persecução Cível (novo artigo 17-B, §§1º ao 7º). Termina com a dupla previsão atual, mas deixa sem resposta se outras formais consensuais serão admissíveis, ou se as existentes podem ou devem ser configuradas, na única forma de potestade consensualizada tratada na futura lei.
Interessa perceber o silêncio legislativo sobre as hipóteses de ilicitudes que podem legitimar o exercício da competência sancionadora consensual. Preconiza-se que, em qualquer caso, “considerará a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, da rápida solução do caso” (novo art. 17-B, §5º). Esta abertura legal ensejará ampla liberdade de conformação regulamentar pela Instituição celebrante.
Até a conclusão deste estudo, diversos Ministérios Públicos Estaduais tomaram a iniciativa de regulamentar, em ato normativo específico, o Acordo de Não Persecução Cível (ANPC), fundado na Lei nº 13.964/2019. O MPSP promoveu esta regulamentação, através da Resolução COPJ-OE nº 1.193, de 11.03.2020. O MPPE o fez na Resolução CSMP nº 01, de 05.02.2020. O MPPI editou a Resolução CPJ/PI nº 04, de 17.08.2020. O MPAP aprovou a Resolução CPJ nº 03, de 16.09.2020. O MPPB aprovou a Resolução CPJ nº 040/2020, de 28.09.2020. O MPMT editou a Resolução CSMP nº 080, de 09.11.2020. O MPGO aprovou a Resolução CPJ nº 01, de 22.02.2021. No Ministério Público Federal, foi aprovada a Orientação Normativa 5ª CCR-MPF nº 10, de 09.11.2020.50
Outros Ministérios Públicos manifestaram-se a respeito: o MPRS aprovou a Informação Técnico-Jurídica nº 01, de 23.01.2020. O MPCE divulgou a Nota Técnica CAODPP nº 01, de 04.02.2020. O MPSC editou a Nota Técnica CMA, de 14.02.2020. No âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público, encontra-se constituída Comissão dedicada ao estudo da regulamentação nacional do tema.51 Em 01.07.2021, foi apresentada uma proposta de regulamentação nacional sobre a temática.52 53
Ao nosso parecer, a melhor solução seria deliberação legislativa clara sobre o cabimento do termo de ajustamento de conduta (TAC) e do acordo de leniência (AL), como modalidades próprias na consensualidade, no DAS da Improbidade. A disposição que habilita o ANPC a prever “outras medidas em favor do interesse público e de boas práticas administrativas”, ao lado de contemplar aperfeiçoamentos nos mecanismos de governanças de pessoas jurídicas (novo artigo 17-B, §6º), é insuficiente para dar cobertura à consensualidade, já consolidada na atualidade. Se vingar interpretação literal do artigo 17-B, haverá retrocesso nas formas institucionalizadas de acordos.
Categorizar o exercício de potestades públicas é próprio do direito público. Não será diferente na forma de atuação consensual ou dialógica. Oferece previsibilidade e teologia para cada forma de atuação consensualizada, o que permite melhor controle do exercício da competência pública, em face do princípio constitucional da indisponibilidade dos interesses públicos, que está na base de qualquer regime republicano e democrático, no Estado de Direito. Assegura legalidade formal e material de cada solução acordada em face de determinada irregularidade vislumbrada na organização do Estado e no exercício de funções públicas, que podem ser enquadradas no sistema de improbidade administrativa.
No presente momento, verifica-se tanto na Advocacia Pública Federal quando no Ministério Público Federal, nas respectivas regulamentações do ANPC acima referidas, tendência de categorização, distinguindo-se TAC, ANPC e AL54. A prevalecer a tratamento preconizado pelo PLS, haverá necessidade de nova interpretação sistemática para que se implementem fórmulas que instrumentalizem a consensualidade a perseguir todas as vantagens que pode propiciar para os interesses públicos.
4. Conclusões
- Desde o advento da atual Constituição, o sistema de responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa constitui o mais relevante segmento do Direito Administrativo Sancionador Anticorrupção, no Direito Brasileiro.
- Na atualidade, este sistema de responsabilização é formado por duas legislações nacionais essenciais: a Lei nº 8.429/1992 – Lei Geral de Improbidade Administrativa e a Lei nº 12.846/2013 – Lei de Improbidade das Pessoas Jurídicas. Além dessas leis estruturantes, o sistema conta com diversas previsões legislativas específicas extravagantes.
- O Projeto de Lei da Câmara nº 10.887/2018 deu origem ao Projeto de Lei do Senado nº 2.505/2021, propugnando uma verdadeira nova Lei Geral no domínio da improbidade administrativa, considerando as mudanças substanciais que propõe na Lei nº 8.429, fato que exigiria uma profunda e ampla discussão pública, o que é obstado pela situação anormal vivenciada nestes tempos de pandemia da Covid-19.
- Alterações substanciais sobre os quatro elementos estruturantes do sistema de responsabilização – bens jurídicos tutelados, ilícitos, sanções e processo – foram aprovadas na Câmara dos Deputados e necessitam de rediscussão pelo Senado Federal. O presente artigo não esgota as críticas do autor sobre a formulação legislativa.
- Na presente reflexão, sem prejuízo de outras tratadas no próprio texto, foram objeto de críticas:
- 1 Análise do bem jurídico: (i) o esvaziamento da tipologia do enriquecimento ilícito por aquisição de patrimônio desproporcional (artigo 9º, inciso VII, da LGIA); (ii) a injustificada extirpação da modalidade culposa de improbidade administrativa, hoje positivada no artigo 10 da LGIA; (iii) o comprometimento da tipologia de improbidade que atenta contra a legalidade, imparcialidade e lealdade institucional, hoje prevista no artigo 11 da LGIA;
- 2 Análise do ilícito: (i) restrição injustificada das formas de imputação de responsabilidade de pessoa jurídica e de pessoas físicas a ela vinculadas (sócios, cotistas, diretores e “colaboradores”); (ii) criação de uma “categoria inferior” de improbidade, que, mesmo rotulada como tal, não ensejará – sequer in abstracto - as penalidades constitucionais de perda da função pública (para agentes públicos) e suspensão de direitos políticos (para quaisquer pessoas físicas, exceto estrangeiros);
- 3 Análise da sanção: (i) o aumento disfuncional do prazo da penalidade de suspensão de direitos políticos; (ii) a redução disfuncional da sanção de multa civil, em todas as categorias de improbidade; (iii) a disciplina disfuncional e inefetiva da proibição de contratar com o Poder Público; (iv) a manutenção da inefetividade da proibição de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, contratar com o poder público;
- 4 Análise do processo: (i) a não resolução adequada da relação umbilical existente entre a Lei de Improbidade e a Lei nº 12.846/2013; (ii) a ausência de fundamentos de modalidades de consensualidade, que pode ser utilizada no regime da improbidade administrativa, impedindo que da potestade consensualizada se possa extrair todas as vantagens para o interesse público, e, ao mesmo tempo, não coloque em risco a tutela repressiva de ofensas à probidade constitucional, com o ajuizamento, processamento, julgamento e condenação pela prática de atos de improbidade administrativa.
Notas
54 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Orientação Normativa nº 07/2017, Acordos de Leniência. 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Brasília: MPF, 2017.
Referências bibliográficas
ABE, Nilma de Castro. Gestão do patrimônio público imobiliário. 2ª ed. rev e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BINENBOJM, Gustavo. O Direito Administrativo Sancionador e o estatuto constitucional do poder punitivo estatal: possibilidades, limites e aspectos controvertidos da regulação do setor de revenda de combustíveis. Revista de Direito Administrativo Contemporâneo - ReDAC, v. 11, p. 11-35, 2014.
BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. Tradução Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
CHEVALIER, Jacques. L`État de drot. Paris: Montchrestien, 1994.
FERREIRA, Daniel. Sanções administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001.
. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988. Belo Horizonte : Fórum, 2009.
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 9ª ed. São Paulo: Saraivza, 2017.
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Prefácio. In: OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. (Coord.) Direito Administrativo Sancionador. São Paulo : Malheiros, 2019.
GUEDES, Francisco Augusto Zardo. Os Princípios Constitucionais da Administração Pública e os Acordos Substitutivos de Procedimentos e Sanções Administrativas. In: XXI Congresso Nacional do Conpedi/UFF, 2012, Niterói-RJ. Direito e Administração Pública, 2012. p. 131-151.
VIANA, Ismar dos Santos. Fundamentos do processo de controle externo. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4ª ed. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1976.
. Teoria Geral do do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LIMA, Ana Júlia Andrade Vaz de. Programa de Integridade e Lei 12.846/13 - O Compliance na Lei Anticorrupção brasileira". São Paulo : Lumen Juris, 2018.
MACHADO, Pedro Antônio de. Acordo de Leniência & a Lei de Improbidade Administrativa. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2017.
MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo; CYMBALISTA, T. M. . Os Acordos Substitutivos do Procedimento Sancionatório e da Sanção. REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PÚBLICO, v. 31, p. 51-68, 2010.
MARRARA, Thiago; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Lei Anticorrupção Comentada. Belo Horizonte; Fórum, 2019.
MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador. As sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo : Malheiros, 2007.
MENDONÇA, José Vicente Santos de.. Direito Constitucional Econômico: a intervenção do Estado na economia à luz da razão pública e do pragmatismo. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. v. 1. 421p .
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Estudo Técnico nº 01/2017. Estudo sobre inovações da Lei nº 12.846/2013 - a Lei anticorrupção (LAC) -, e seus reflexos no denominado microssistema anticorrupção brasileiro, com destaque para a adoção de instituto negocial e da ótica da consensualidade no âmbito sancionador, consubstanciada na incorporação normativa do acordo de leniência. 5ª Câmara de Coordenação e Revisão. Brasília: MPF, 2017.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Orientação Normativa nº 07/2017, Acordos de Leniência. 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Brasília: MPF, 2017.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Orientação Normativa nº 10/2020. 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Brasília: MPF, 2020.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. PROJETO DE LEI SUBSTITUTIVO – PL nº 10.887/2018 ANÁLISE DE PONTOS CRÍTICOS. 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF Comissão Permanente de Assessoramento para Acordos de Leniência e Colaboração premiada. Brasília : MPF, 2020.
MOREIRA, Egon Bockmann. Agências reguladoras independentes, poder econômico e sanções administrativas. RDE. Revista de Direito do Estado, v. 2, p. 163-192, 2006.
NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. 2ª ed. Buenos Aires: Astrea, 2007.
NOBRE Júnior, Edílson Pereira. Sanções administrativas e princípios de direito penal. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, voluma 219, janeiro/março 2000, páginas 127-151.
OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006.
. Improbidade administrativa e sua autonomia constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
. Desafios e avanços na prevenção ew no combate á corrupção, na atuação cível, do Ministério Público Federal, nos 30 anos da Constituição Federal. In: HIROSE, Regina Tamami (Coord.). Carreiras Típicas de Estado. Desafios e avanços na prevenção e no combate à corrupção. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
. (Coord). Direito Administrativo Sancionador. Estudos em homenagem ao Professor Emérito da PUCSP Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 2019.
OLIVEIRA, José Roberto Pimenta.; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Direito Administrativo Sancionador. Breve evolução Identidade. Abrangência e Funcionalidades. Interesse Público, v. 22, p. 83-126, 2020.
. Programas de integridade anticorrupção como fator de dosimetria na improbidade administrativa investigação dos ilícitos de das da improbidade que devem receber tratamento. In: DAL POZZO, Augusto Neves; MARTINS, Ricardo Marcondes. (Org.). Compliance no Direito Administrativo. Volume 1. 1ed. São Paulo: RT, 2020, v. 1, p. 1-30.
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. São Paulo : RT, 1985.
OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria Geral da Improbidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: RT, 2018.
.Direito administrativo sancionador. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo : RT, 2019.
PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na administração pública. São Paulo: Malheiros, 2015.
PELEGRINI, Márcia. A competência sancionatória do Tribunal de Contas no exercício da função controladora. Contornos constitucionais. Tese de Doutoramento. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. PUC-SP. São Paulo. 2008.
PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Sanções disciplinares. O alcance do controle jurisdicional. Belo horizonte: Fórum, 2007, p. 46-54.
QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. Responsabilização judicial da pessoa jurídica na lei anticorrupção. In: SOUZA, Jorge Munhos; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. Lei anticorrupção. Salvador: JusPodivm, 2015.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
ROSE-ACKERMAN. Susan. Corruption and government. Causes, consequences and reform. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
DOBROWOLSKI, Samantha Chantal. O acordo de não persecução cível no Ministério Público Federal. Disponível em: https://www.jota.info/?s=anpc. Acesso em 29.07.2021.
STIR, Bernard. Les sources constitutionnelles du droit administratif. 7ª ed. Paris: L.G.D.J., 2011.
SUNDFELD, Carlos Ari. A Defesa nas Sanções Administrativas. Revista Forense, v. 298, p. 99-106, 1985.
SUNDFELD, Carlos Ari; ARRUDA CÂMARA, Jacintho. Acordos substitutivos nas sanções regulatórias. Revista de Direito Público da Economia, v. 34, p. 133-152, 2011.
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997.
VITTA, Heraldo Garcia. A Sanção no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003.
VORONOFF, Alice. Direito administrativo sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2018.