Dia 21 de abril de 2020, feriado nacional em que se homenageia o protomártir da independência do Brasil, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”.
Entre todos os rebelados na Inconfidência Mineira, insurretos contra a dominação portuguesa -o Brasil era então uma colônia-, Tiradentes foi o único a ser enforcado naquele longínquo 21 de abril de 1792, além de ter o corpo esquartejado e os restos mortais exemplarmente distribuídos por pontos diversos das Minas Gerais. Não por acaso, era o de classe mais baixa, sendo o seu ofício profissional, então subvalorizado.
O movimento, que deveria ser deflagrado no ano de 1789, no dia da “derrama” (cobrança do tributo atrasado sobre o ouro extraído), acabou sufocado. Mesmo ano em que eclodiu a Revolução Francesa, fortemente influenciada pelos autores iluministas, como Jean Jacques Rousseau e Montesquieu, por exemplo, que discorriam em prol dos direitos humanos naturais, sobremodo a igualdade, e contra o absolutismo monárquico.
No Brasil experimentamos um momento de estabilidade democrática, mas nossa jovem democracia, por último restaurada em 1985, vem sendo submetida a bombardeios e a movimentos subterrâneos, que nos remetem aos porões do DOI-CODI, aparelhos de cruel repressão, largamente usados na ditadura de 1964-1985.
Diferentemente das democracias europeias e dos EEUU - que criaram a sua “monarquia temporária e eletiva”, cunhando o inédito presidencialismo, a partir dos “Artigos Federalistas”, inspirados nos autores iluministas -, o Brasil, desde o golpe militar que culminou com a derrubada da monarquia constitucional para proclamar a República, viveu vários momentos de ameaça e de efetiva ruptura democrática. Sem ser monarquista, advirto, não deixo de rememorar, e prelevar, que D. Pedro II não era um déspota, e tampouco um ignorante, voluntarioso e de evidente vocação autoritária, mas antes um governante ligado às ciências, às letras, preocupado com o desenvolvimento econômico e social do Brasil.
Neste 21 de abril, e nos próximos meses, quiçá um ou dois anos mais, os brasileiros haveremos de continuar a lutar pelas nossas independências e liberdades. Mas não propriamente a liberdade de ir, vir e ficar, pois que a liberdade ambulatorial deve, por ora, em razão da quarentena, ceder lugar, dar passagem, até por ponderação de princípios constitucionais, a dois outros valores de especial estatura e atenção na quadra excepcional da pandemia da Covid-19 que atravessa o mundo, quais sejam, o direito à saúde e, o maior deles, mas umbilicalmente ligado a este, o direito à vida.
Não se trata apenas da Organização Mundial da Saúde. No mundo inteiro, médicos, cientistas, pesquisadores, estudiosos, de forma unânime, insistem que a melhor forma de controle, de prevenção à saúde, até para preservar os sistemas de saúde, é a adoção e o respeito ao distanciamento social. Os governantes que negligenciaram a adoção do distanciamento social, ou adotaram-no inicialmente de uma maneira mais flexível, viram as populações de seus países pagarem um altíssimo preço, por vezes com centenas de milhares de vidas sendo precocemente interrompidas. Basta olhar para os números devastadores dos Estados Unidos, Itália, Espanha e Inglaterra.
As dificuldades avolumam-se a cada dia. Faltam médico(a)s e enfermeiro(a)s, EPIs, leitos hospitalares, vagas de UTI, respiradores e testagem. Sobra adoecimento, inclusive do pessoal de saúde, “soldados” dessa guerra sanitária mundial -o pior evento global após a segunda grande guerra-, uns tendo que se afastar, outros, lamentavelmente, morrendo. A vacina não virá logo, apesar dos esforços monumentais da comunidade científica mundial, e não existe ainda o retroviral salvador, como se deu com o tamiflu, relativamente à gripe H1N1. Pacientes graves que são internados em UTI ocupam leito por prazo alongado, ao passo que na outra ponta outros podem não ter acesso a uma vaga, seja pela absoluta falta de leitos, seja em decorrência de um perverso, mas pela escassez, inevitável “processo de seleção”, o que se pode traduzir em sentença de morte.
No meio do pandemônio, há os que crescem, como aconteceu com o antes desconhecido ex-ministro Mandetta, enquanto outros encolhem, ou apenas revelam, ratificam, a sua pequenez, a sua diminuta dimensão. No Amazonas, o caos na saúde já se instalou. Anos e anos de má gestão na saúde, de desvios, e a conta chega no pior momento. Para completar, ainda ocorrem as, digamos assim, “más escolhas”. O governo do Estado, em plena crise, achou viável comprar respiradores, inadequados, em loja de vinho, superfaturados em 316% , depois de haver arrendado um hospital desativado e em condições de abandono, segundo constatado por oficiais de Justiça, ao custo de 2,6 milhões de reais, em vez de aparelhar o hospital de referência Delphina Aziz, onde apenas um dos quatro andares encontrava-se em funcionamento. Se adoecesse, dificilmente o governador viria a ocupar um desses leitos, ao contrário do premier inglês Boris Johnson, internado, tratado e curado em hospital público.
Infelizmente, não obstante a gravidade do momento, no Brasil, o relaxamento das medidas de isolamento social transformou-se em objeto de profundo embate e questionamento, em geral capitaneado por setores do empresariado, temperado por forte caráter ideológico, pressionando ou recebendo a adesão de agentes do Estado. Os interesses dos mais vulneráveis são incessantemente citados como justificativa para encerrar ou flexibilizar os parâmetros de distanciamento social, mas cabe justamente ao Estado socorrê-los, ampliando a rede de proteção social, ainda que de forma episódica, temporária. Quanto aos trabalhadores informais, é sabido que sua condição é umas vezes preocupante, noutras desesperadora. Se o Congresso Nacional agiu rápido para aprovar valor equivalente ao triplo do auxílio emergencial inicialmente proposto, a burocracia estatal, quanto aqueles que estavam fora do cadastro do bolsa-família, enredou-se, perdeu-se em “discussões técnico-burocráticas”. É ainda o Estado que pode, e deve mesmo, socorrer as empresas e empregados nesse momento de aguda paralisação da economia.
Na esteira, para piorar tudo, se antes vinham sendo organizadas carreatas e manifestações antidemocráticas, pedindo o fechamento do Congresso Nacional e do STF, ultimamente o alvo se tornou as medidas de distanciamento. Cidadãos das classes A e B defendendo o direito de pessoas humildes das classes C e D de se exporem, voltando a se acotovelarem no transporte coletivo lotado, com grandes chances de contaminarem e se contaminarem, podendo, numa eventual explosão da epidemia, não encontrarem a acolhida necessária nos serviços de saúde, que quando já não se apresentam saturados, estão muito próximos disso. Os reflexos no mundo real são indeléveis, como atestam as quedas no índice de isolamento na cidade de São Paulo, que de quase 70%, o ideal, já chegou a abaixo de 50%; mais pessoas circulando, mais adoecerão e morrerão, infelizmente
Nessa escalada, no último domingo, dia 19 de abril, “liliputianos” resolveram reunir as duas pautas, mas com o clamor específico de “intervenção militar” (eufemismo para golpe), com o fim da quarentena, o fechamento do Congresso Nacional, do STF, e a edição de um novo AI-5. Saudades, para muitos, de um tempo que não viveram - eram crianças ou sequer tinham nascido -, ou simplesmente não experimentaram as rudezas do regime, que por óbvio não convivia bem com a liberdade de expressão e com o direito de reunião. Eu, por exemplo, à época adolescente, aluno de colégio militar, não fui capaz de entender algumas das imagens mais icônicas da abertura, marcada pelas chegadas dos exilados nos aeroportos.
Há quem diga que não são intenções reais, mas “meros” instrumentos retórico-pragmáticos destinados a emparedar o Congresso Nacional e o STF, constranger os Poderes Legislativo e Judiciário, que vêm impondo algumas derrotas ao governo. Outros sustentam o contrário, que seriam sim intenções sérias, advindas do desconforto da convivência com o sistema de freios e contrapesos, com os atritos naturais que decorrem do regime democrático, pois seria muito mais fácil, confortável, a “liberdade autocrática”.
O período de quarentena, de isolamento social, tem sido duro, todos sentindo, em menor ou maior grau, o afastamento de seus afazeres habituais, dos amigos, parentes e familiares; mais esse estresse, era dispensável.
Isso estressa e testa também as instituições. Além das reações de sempre, com autoridades do Legislativo, do Judiciário, de juristas, da imprensa e das redes sociais, repudiando essas manifestações antidemocráticas, desta feita atingiu-se outro patamar, com a determinação do STF de instauração de inquérito policial para apurar os fatos, a requerimento do Procurador-Geral da República. De se esperar que não só patrocinadores e organizadores possam ser responsabilizados, pois há muitas imagens que podem ajudar a identificar participantes, inclusive a partir de placas de automóveis e buscas nas redes sociais.
As instituições democráticas têm resistido bem, mas a democracia, para que não morra, tem que ser bem cuidada, defendida contra essas investidas de viés autoritário. Aliás, essas instituições são os pilares do Estado Democrático de Direito. Os Poderes são independentes e harmônicos, e a própria Constituição -conjunto reitor de regras e princípios formadores do Estado de Direito, e não pessoa alguma em particular- prevê as formas, tão necessárias, de contenção do poder pelo poder. Estávamos precisando de providências mais efetivas.
[1]Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/20/amazonas-compra-de-adega-respiradores-inadequados-com-sobrepreco-de-316.htm>. Acesso em: 21 abr 2020.
[1]Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/16/coronavirus-amazonas-aluga-hospital-desativado-e-justica-suspende-contrato.htm>. Acesso em: 21 abr 2020.
Sérgio Monteiro Medeiros é mestre em ciências jurídicas, área de concentração Direito Econômico, pela UFPB, e membro do Ministério Público Federal/Procurador Regional da República.