“os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento” Gabriel García Márquez (Cem anos de solidão)
Em 15 de julho deste ano, uma estátua da ativista negra Jen Reid foi colocada no pedestal de onde, no início de junho, manifestantes antirracistas retiraram a estátua do traficante de escravos Edward Colston, jogando-a em um rio na cidade inglesa de Bristol. A estátua de Jen Reid foi concebida pelo artista britânico Marc Quinn para ser instalada provisoriamente no pedestal onde a própria manifestante, punho direito erguido no ar, subiu pouco depois da derrubada do monumento de 1895. A intenção do escultor era a de chamar a atenção para o movimento antirracista que correu o mundo, deflagrado nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd por um policial branco, em 25/05/2020, em Minneapolis, nos Estados Unidos.
Alguns historiadores apontam o risco de que a derrubada de monumentos erguidos em homenagem a pessoas de biografias como a do traficante de escravos possa desembocar em um apagamento da história. Um debate muito interessante, em que há argumentos respeitáveis em perspectivas distintas e até opostas.
Certo é que a profusão de homenagens a brancos, em geral das classes privilegiadas, se contrapõe a uma lacuna quanto à outra parte da história: no caso do Brasil, por exemplo, aquela informada pela perspectiva dos povos originários ou da população escravizada.
Mesmo a forma de contar a história é parte dela própria. No caso do Brasil, reflete uma mirada sobre o país vinda de fora, a partir do olhar colonizador. Os atos ocorridos, mundo afora, de derrubada de homenagens desse tipo, têm uma importância inquestionável.
O genial Banksy, artista da mesma Bristol, propôs uma alternativa para a questão, que utiliza a própria estátua de Colston. O artista sugeriu em seu Instagram:
“Nós o retiramos da água, colocamos de volta ao pedestal, amarramos um cabo em volta de seu pescoço e encomendamos algumas estátuas de bronze em tamanho real de manifestantes ao puxá-lo para baixo. Todo mundo feliz. Um dia famoso comemorado”.
A proposta contextualiza a derrubada da estátua, não apaga a história e acrescenta a página viva da intensificação, após o assassinato de George Floyd, do movimento “black lives matter”.
Em nosso país, a chaga da violência contra a população negra e do etnocídio dos povos originários ainda repercute, em seguidas manifestações de autoritarismo, que desembocaram na lamentabilíssima realidade atual. Lilia Schwarcz, em “Sobre o autoritarismo brasileiro”, pergunta com toda propriedade:
“Como é possível definir o Brasil como um território pacífico se tivemos por séculos em nosso solo escravizados e escravizadas, admitindo-se, durante mais de trezentos anos, um sistema que supõe a posse de uma pessoa por outra? Lembremos que o Brasil foi o último país a abolir tal forma de trabalho forçado nas Américas – depois de Estados Unidos, Porto Rico e Cuba – tendo recebido 5,85 milhões de africanos num total de 12,52 milhões de pessoas embarcadas e que foram retiradas compulsoriamente de seu continente por essa imensa diáspora atlântica; a maior da modernidade. […] Também vale a pena indagar por que, vira e mexe, sobretudo nos momentos de crise política, caímos no sonho da ‘concórdia’ do Regime Militar, como se esse período tivesse sido encantado e carregasse consigo a solução mágica para nossos problemas mais estruturais.”2
Esse mesmo fio condutor da história brasileira é o que faz com que se considere natural toparmos, em diversas cidades brasileiras, com avenidas, ruas, praças e escolas Castelo Branco, Costa e Silva, Medici, Ernesto Geisel, João Figueiredo ou outro nome escolhido entre os demais 372 responsáveis por graves violações de direitos humanos ocorridas durante o período que o art. 1º da Lei nº 12.528/2011, ao criar a Comissão Nacional da Verdade (CNV), estabeleceu, ao remeter ao art. 8º, caput, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, como sendo aquele compreendido entre 18/09/1946 e 5/10/1988.
Constam, do relatório final dos trabalhos da CNV, 29 recomendações voltadas à superação do legado autoritário do regime militar. Entre elas, a de número 28 propõe a alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios e instituições públicas que se refiram a agentes públicos ou a particulares que notoriamente tenham tido comprometimento com a prática de graves violações.3
Nessa linha, Mia Swart observa que “a história de um país pode ser reabilitada por meio da renomeação de suas ruas e pela criação de monumentos e memoriais.”4
Há exemplos desse tipo de mudanças na denominação de espaços e bens públicos em diversas partes do mundo. Lembre-se que até mesmo cidades já mudaram de nome, como Ciudad del Este, no Paraguai, que substituiu o anterior Puerto Presidente Stroessner.
Em Belo Horizonte, a Câmara Municipal aprovou lei, em 2012, dando o nome de José Maria Magalhães ao antigo elevado Costa e Silva. Em 2014, também antes de a CNV expedir as importantes recomendações constantes do relatório que publicou em dezembro do mesmo ano, foi a vez de o viaduto Castelo Branco ser renomeado como Dona Helena Greco, militante dos direitos humanos e primeira vereadora mulher na capital mineira. No último caso, inclusive, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal em Minas Gerais manteve à época um diálogo muito convergente com a atuação do Poder Legislativo da capital mineira.
Também anterior à Recomendação nº 28 da CNV, é interessante, pelo seu caráter pedagógico, o exemplo de alteração, em 2014, da denominação do antigo Colégio Estadual Presidente Emílio Garrastazu Médici, localizado em Salvador/BA, que, após votação realizada entre a comunidade escolar, passou a ser chamado Carlos Mariguella.5
Em 2015, a ponte Costa e Silva, em Brasília, teve a sua denominação alterada para que recebesse o nome de Honestino Guimarães, liderança do movimento estudantil durante a ditadura militar.6 Todavia, a Justiça do Distrito Federal, em sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça local, determinou o retorno à denominação anterior, considerando não ter havido consulta pública para a modificação.
No mesmo ano, foi criado na cidade de São Paulo o programa “Ruas de Memória”, com o objetivo de promover a alteração dos nomes de ruas, pontes, viadutos, praças e demais logradouros públicos que homenageiam pessoas vinculadas à repressão do regime militar, ressignificando-os com nomes daqueles que lutaram pela democracia, liberdade e direitos humanos.
Assim, em 2016, na capital paulista, o elevado Costa e Silva recebeu o nome Presidente João Goulart. A lembrança ao ex-presidente deposto pelo golpe de 1964 desfaz, assim, a homenagem prestada ao ditador, em 1971, pelo então prefeito biônico Paulo Maluf, responsável pela construção do elevado, conhecido como Minhocão e até hoje recorrentemente questionado devido à sua mal formulada concepção urbanística.
A Câmara Municipal de São Paulo aprovou, em 2018, lei que alterou o nome do viaduto 31 de Março (data oficial do golpe de 1964) para Therezinha Zerbini, uma das fundadoras do Movimento Feminino pela Anistia, com o que o Poder Legislativo paulistano implementou necessária medida de reparação simbólica às vítimas da ditadura militar.
Via de regra, essas homenagens foram estabelecidas em leis, ou mesmo em atos normativos infralegais do Poder Executivo, que, ao exaltarem a memória de pessoas que tiveram ativa participação no período de exceção, trazem valores inconciliáveis com o regime democrático instituído pela Constituição de 1988, à luz inclusive do princípio democrático albergado desde seu primeiro artigo. Portanto, se anteriores a 05/10/1988, esses atos não foram recepcionados pela Constituição; se posteriores, são inconstitucionais.
Em 2014, o Ministério Público Federal (MPF) propôs, no Rio de Janeiro, ação civil pública postulando a supressão da denominação Presidente Costa e Silva conferida à Ponte Rio-Niterói pela Lei nº 5.595/70, por violar o direito à memória e não ter sido recepcionada pela Constituição de 1988.7 Diante da extinção do processo sem julgamento do mérito, por suposta impossibilidade jurídica do pedido, foi interposta apelação.
Há casos, ainda, em que inexiste mesmo qualquer ato normativo prevendo tais tipos de homenagens. Em 2018, o MPF ajuizou, em Belo Horizonte, ação civil pública buscando a alteração dos nomes de vias públicas denominadas Castelo Branco, Costa e Silva e Medici, localizadas no Parque Aeronáutico de Lagoa Santa, em Minas Gerais.8 Não se pretendia, obviamente, que o Poder Judiciário indicasse as novas denominações, mas que fosse reconhecida sua invalidade. A ação, porém, foi julgada improcedente pela Justiça Federal em Minas Gerais, tendo sido apresentado recurso pelo MPF.
Na atualidade, chega-se a realizar novas homenagens dessa natureza, como no caso das obras de um prédio do Exército Brasileiro, no Recife, onde as placas já indicam a denominação edifício marechal Castelo Branco, o que ensejou o ajuizamento de ação civil pública, este ano, pelo MPF em Pernambuco, pleiteando que a União seja condenada a implementar a Recomendação nº 28 da CNV.9 Como aponta a inicial da ação, “o próprio ato normativo que regula o procedimento para denominação de locais e instalações sob administração do Exército não respalda a escolha feita pelo Comando da 7ª Região Militar, porquanto determina que se utilize nomes de vultos incontestes da História do Brasil, personagens consagrados regional ou nacionalmente, na História do Brasil, cuja avaliação esteja isenta de quaisquer influências de ordem passional e, finalmente, proíbe a aprovação de nomes de personalidades […] e ações (feitos), locais, datas e tradições controvertidos (Portaria nº 039, de 12 janeiro de 1996)”.
Não se trata, com as medidas buscadas em tais ações, de suprimir a memória de um período de nossa história. Sempre que realizadas tais mudanças, poderão ser inseridos registros, em placas ou outros meios – inclusive digitais –, dos períodos e das circunstâncias em que perduraram as homenagens a personagens como as mencionadas. Essas alternativas constituem formas de evitar o apagamento da história de violência e autoritarismo brasileiros, desobrigando-nos, porém, de tropeçarmos nas ruas com nomes como os dos 377 autores de graves violações de direitos humanos indicados no relatório final dos trabalhos da CNV.
O exemplo do caso das obras do prédio do Exército no Recife, ao considerar Castelo Branco “vulto inconteste da História do Brasil”, evoca o fracasso a que sucumbiram muitos habitantes da Macondo de Cem anos de solidão, mencionada na epígrafe deste texto. No vilarejo, que padeceu da doença da insônia e das misteriosas evasões da memória, em “todas as casas haviam escrito lembretes para memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tanta vigilância e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos”.10
No Brasil, para agravar esse misterioso mal, pregam-se às coisas placas indicativas da própria realidade imaginária, como aquela que Lilia Schwarcz descreve como a do “sonho da ‘concórdia’ do Regime Militar”, acima citada.
——————————————————–
1A proposta completa, no instagram @banksy, é:
What should we do with the empty plinth in the middle of Bristol?
Here’s an idea that caters for both those who miss the Colston statue and those who don’t.
We drag him out the water, put him back on the plinth, tie cable round his neck and commission some life size bronze statues of protestors in the act of pulling him down. Everyone happy. A famous day commemorated.
2SCHWARCZ, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 22-23.
3BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. Relatório. Volume I. p. 974. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf. Acesso em 28/07/2020.
4SWART, Mia. Name changes as symbolic reparation after transition: the examples of Germany and South Africa. German Law Journal. V. 09, n. 02. p. 121. Tradução livre.
5Cf. Portaria nº 865/2014, do Secretário da Educação do Estado da Bahia, publicada no Diário Oficial do Estado aos 12/02/2014. Sobre o processo participativo de escolha do novo nome do colégio estadual: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/02/governo-muda-oficialmente-nome-de-colegio-de-medici-para-marighella.html. Acesso em 24/01/2018.
6A Comissão Nacional da Verdade, no relatório dos seus trabalhos, apontou que “Honestino Monteiro Guimarães desapareceu depois de ter sido preso por forças de segurança do Estado no dia 10 de outubro de 1973, no Rio de Janeiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar, implantada no país a partir de 1964.” BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. Relatório. Volume III. Mortos e desaparecidos políticos. p. 1324. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_3_digital.pdf. Acesso em 28/07/2020.
7 Disponível em: http://www.prrj.mpf.mp.br/frontpage/noticias/mpf-quer-retirada-de-nome-de-ex-ditador-da-ponte-rio-niteroi
8Disponível em: http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/acp-justica-de-transicao-mudanca-nome-de-ruas.pdf
9 Disponível em: < http://www.mpf.mp.br/pe/sala-de-imprensa/noticias-pe/mpf-ajuiza-acao-para-mudanca-de-nome-de-predio-que-homenageia-presidente-do-regime-militar>
10 GARCÍA MÁRQUEZ. Gabriel. Cem anos de solidão. Record. Rio de Janeiro – São Paulo. 2 a. edição. 1996. Tradução: Eliane Zagury. p. 51.
EDMUNDO ANTONIO DIAS NETTO JUNIOR – procurador da República em Belo Horizonte, é procurador regional dos direitos do cidadão substituto do Ministério Público Federal em Minas Gerais.
*Artigo publicado originalmente no site Jota