A democracia é uma obra incompleta, que exige cuidados diários para que se fortaleça e se consolide. É, em larga medida, uma ideia contraintuitiva para uma sociedade como a brasileira, cuja história é marcada por longos períodos de ditadura e que vive, não sem percalços, seu mais longo período de estabilidade institucional.
Tal incompletude não é uma fragilidade ou defeito da democracia, mas, sim, uma virtude, que cobra o compromisso renitente de agir e pensar processos e ritos, decisões que demonstrem o real compromisso com ideais republicanos.
Democracia não se faz com discurso vazio ou retórico, nem com um olhar apegado ao formalismo que despreza a essência das decisões e suas consequências. O legado de nossas ações é muito mais concreto do que a fluidez de nossas palavras.
A discussão sobre a lista tríplice está na encruzilhada entre o apego a uma ausência de regra expressa que obrigue um rito para a escolha do PGR e o olhar prospectivo para o resultado concreto da forma de indicação.
De um lado, um modelo em que não se sabe quem são os candidatos, não se conhece a forma como os nomes chegam ao Presidente da República e nem se permite um debate público sobre seus compromissos. De outro lado, um processo em que a transparência inicia com candidaturas, permite um olhar sobre a coerência entre o presente e o passado de tais pessoas, a forma como conduziram suas carreiras no MPF, como se posicionaram nos momentos cruciais de crise, como lidaram com temas como direitos humanos, indígenas, meio ambiente, racismo e a desigualdades, o pensar sobre as questões criminais, assuntos que, na essência, caberá ao PGR conduzir no STF e na liderança do MPF.
Em favor da opacidade, tem-se a falta de uma regra constitucional expressa que dê ao MPF o mesmo tratamento que foi dado aos demais 29 Ministérios Públicos brasileiros, em que a lista tríplice é uma realidade desde a década de 1980, mas que remonta ao período colonial.
A razão histórica para a ausência da lista tríplice para PGR decorre do fato de que, até 1988, o PGR era o Advogado-Geral da União. A situação, embora alterada formalmente em 1988, somente se tornou realidade em 1993, quando a AGU passou a existir de verdade. Até 1993, portanto, ser PGR era, também, ser AGU, um cargo que o Presidente da República pode demitir livremente.
Hoje, a realidade é outra e o PGR tem que ser autônomo e independente do governo, em mais um dos mecanismos que enriquecem a nossa democracia.
Os críticos ao modelo certamente trarão o argumento de que a lista é corporativista, já que organizada por uma entidade privada. O argumento, formal, foge da discussão essencial. A inclusão da lista tríplice na Constituição Federal é uma bandeira histórica do MPF e a ANPR é o canal pelo qual a luta se processa, com as mesmas regras utilizadas nas outras listas tríplices, em que votam os membros ativos do MPF, associados ou não. A ANPR é mero agente de execução da lista.
Conhecidos os candidatos ao cargo, a instituição faz o primeiro dos crivos, com o olhar de quem convive com os pretendentes e percebe a coerência de suas atuações.
Dá-se, então, à sociedade e ao Presidente da República um leque de opções, para que se faça um segundo filtro, político, que será objeto de uma terceira checagem, com a submissão do nome ao Senado.
Ao Presidente da República, democraticamente eleito, se reservou a legitimidade da escolha, que não se resume a um nome, por melhor que seja. A escolha será entre um gesto que lega ao futuro compromisso com o ideal republicano ou a manutenção de um retrocesso instituído em passado recente. São lícitas as escolhas, mas diferem na mensagem que transmitem.
Ubiratan Cazetta, procurador regional da República e presidente da ANPR