A cada dois anos, emerge no Brasil um intenso debate sobre o processo de escolha do procurador-geral da República (PGR). Essa discussão, que é travada nos meios acadêmicos, na imprensa e nas redes sociais, ecoa nos gabinetes do poder e normalmente orbita em torno da lista tríplice.
Esse debate é alimentado, no fundo, por posições e expectativas de diferentes naturezas, elementos que costumam ficar acobertados nos bastidores enquanto a retórica jurídica sobe ao palco e faz sua magia de convencimento.
Ocorre que alçar esses elementos à condição de protagonistas é um recurso que tem o potencial de enriquecer nosso conhecimento sobre a natureza do problema debatido, o que propicia uma compreensão mais apurada do que está em jogo e amplia o campo das soluções.
Um cálice amargo de pragmatismo e realidade
O polemista escocês Thomas Carlyle apelidou a economia como a “ciência sombria”. Justificativas para essa alcunha nunca faltaram, mormente para uma disciplina que cuida de escolhas sob restrições e enxerga o ser humano como um agente movido majoritariamente pelos seus interesses próprios.
Inspirado nesse epíteto, é hora de trazer uma nota acre ao debate. Uma pitada de Teoria de Escolha Pública (TEP) pode cortar a doçura das palavras trabalhadas pela hermenêutica jurídica, mas tem o potencial de aguçar o olhar.
A TEP, que rendeu a James Buchanan o prêmio Nobel de Economia em 1986, aplica a metodologia da economia à política (e também à administração pública) e seu postulado basilar é de que os agentes estatais se comportam de maneira a maximizar a satisfação dos seus interesses próprios.
A pedra de toque da TEP é o reconhecimento de que os agentes estatais são pessoas como quaisquer outras, submetidos aos mesmos motores psíquicos que animam todos nós, e não seres magicamente preordenados para a satisfação automática do interesse público.
Um breve e necessário parênteses: a abordagem econômica aqui sugerida não assume que os indivíduos são motivados apenas pelos seus interesses próprios. Tal premissa é a base do método de análise ora sugerido e não pode ser tomada como uma suposição sobre o conjunto total das motivações de um indivíduo tomado isoladamente.
Nessa toada, a TEP explicita relações que se desenvolvem na esfera estatal mas que normalmente ficam escondidas sobre conceitos jurídicos que dão de barato que o interesse público é algo que decorre naturalmente da ação dos agentes estatais.
Com essa abordagem, a TEP enfrenta com vigor o complexo problema de alinhamento dos interesses próprios dos agentes estatais com o interesse público, o que envolve o recrutamento de incentivos e de restrições adequados.
Assim, para a TEP, a consecução do interesse público passa por um desenho institucional de incentivos e restrições que, em conjunto, atuam para remodelar os interesses próprios dos agentes estatais, de forma que fiquem alinhados com o almejado interesse público. O conhecido problema do agente-principal serve como paradigma para uma exploração mais profunda desse desafio.
Feitas essa considerações, é hora de passar para uma exploração despretensiosa dos incentivos que despontam nos diferentes processos de escolha do PGR, sem qualquer consideração sobre o papel desempenhado pelo Senado Federal na aprovação do nome indicado pelo Presidente da República (parte final do art. 128, §1º, CF). Após, a discussão migrará para uma outra perspectiva que, apesar de relevante, é normalmente relegada.
No âmbito de uma escolha mais livre (art. 128, §1º, da CF), limitada apenas pelos requisitos etário (35 anos de idade) e funcional (integrante da carreira), o candidato a PGR envida esforços majoritários para conquistar a aprovação do Presidente da República, em um processo opaco e que não conhece restrições capazes de coibir a eclosão de interesses antagônicos ao interesse público.
Na escolha do PGR submetida à lista tríplice (nos moldes do que é previsto para os Ministérios Públicos locais – art. 128, §3º, da CF), surge naturalmente um espaço de escrutínio público, ao mesmo tempo em que a complexa relação que se estabelece entre a carreira e o candidato a PGR propicia o fortalecimento de interesses institucionais que são, por natureza, promotores do almejado interesse público. Contudo, efeitos positivos são normalmente acompanhados por efeitos negativos, como a evidente emergência, no caso, de interesses preponderantemente corporativos.
Da mesma premissa fundamental, extrai-se ainda que os grupos articulados que defendem um ou outro modelo são movidos pelos seus interesses próprios e não com vistas à promoção do interesse público. Com isso, não se está a equivaler as motivações de cada um dos grupos (que são claramente diversas), e nem a indicar que ambas são divergentes do interesse público na mesma medida.
Sob essa luz, não há que se falar em uma solução simples, correta e articulada, pois qualquer uma delas apresenta prós e contras que devem ser avaliados com base no ambiente institucional vigente. Dadas as muitas fragilidades do ambiente institucional brasileiro, essa avaliação é particularmente complexa.
Um grande número de debatedores de maior capacidade já desfiou as muitas razões que levam a uma ou a outra solução para o problema da escolha do PGR. Não há muito o que acrescer a tudo que já foi dito, a não ser o convite para palmilhar a agudeza dos fenômenos subjacentes a cada um dos modelos, sem lançar mão de atalhos retóricos que mais escamoteiam a razão do que a aclaram.
Sucede que, independente da solução adotada, o desenho institucional vigente no Brasil apresenta uma lacuna que pode desvirtuar não apenas o exercício reto do cargo de PGR, mas também de muitos outros cargos públicos que passam pela escolha discricionária do Chefe do Poder Executivo.
A relevante pergunta pós-escolha Vamos supor que o processo de escolha para um alto cargo público (qualquer que seja ele) seja um retumbante sucesso. Em outras palavras, vamos partir da premissa de que, de um “processo mágico”, sempre desponte a melhor escolha possível para o provimento desse alto cargo público.
Daí surge naturalmente uma questão relevante: a escolha “ótima” para o cargo é condição suficiente para que a sociedade obtenha um desempenho “ótimo” no exercício desse cargo?
Essa questão é raramente tratada e é difícil especular as razões desse abandono, mas uma hipótese explicativa é que os debates puramente jurídicos transitam por conceitos romantizados que conduzem à falsa percepção de que os agentes estatais são preordenados à consecução do interesse público, engano que ofusca preocupações dessa natureza.
Antes de buscar uma resposta à referida indagação, vale a pena revisitar uma célebre figura da rica mitologia grega.
Ulisses, suas virtudes e a indispensável corrente
Herói grego, personagem de destaque da Ilíada e protagonista da Odisseia, Ulisses percorreu uma trajetória narrativa mitológica marcada pelo exercício de elevados atributos morais e intelectuais.
Rei de Ítaca, Ulisses é hoje lembrado principalmente como o mentor do estratagema do “cavalo de Troia”, estratégia que selou a queda do reino de Ilío e fez com que ele passasse à posteridade como a encarnação da sagacidade.
Sua perspicácia já ecoava muito antes do episódio que o fez célebre, a exemplo de sua sábia proposta sobre a disputa pela mão de Helena, com o que fez que Menelau desposasse a mais bela das mulheres, fonte certa de tribulações. Nesse episódio, Ulisses mostrou ser capaz de domar até mesmo a poderosa luxúria. Além de sagaz, Ulisses era moderado, um homem que não cedia facilmente à tirania das paixões.
A Odisseia narra o atribulado retorno de Ulisses a Ítaca, onde sua esposa Penélope o espera na paciência do tear e seu filho Telêmaco aguarda o regresso do pai que expulsará os oportunistas que cobiçam seu trono. Nesse percurso, Ulisses atravessa com tenacidade agruras como as armadilhas da capciosa feiticeira Circe e as ameaças do ingênuo ciclope Polifemo. Além de sagaz e moderado, Ulisses era também obstinado, um homem fiel aos seus compromissos e ao seu destino.
Astúcia, moderação e perseverança já eram qualidades impregnadas em Ulisses, mas que de nada serviam para o novo desafio que se apresentava nos escarpados rochedos que se avizinhavam no horizonte. Ulisses sabia que as tentações entoadas pelas sedutoras sereias só podiam ser vencidas com pesadas correntes. Sob suas ordens, os tripulantes do seu navio o acorrentaram ao mastro, providência que garantiu não só a segurança de todos naquela arriscada travessia, mas principalmente sua integridade diante daquela inédita provação.
Moral da história: até mesmo Ulisses, o mítico homem virtuoso por excelência, precisou ser acorrentado para não sucumbir às novas tentações que se lhe apresentaram.
A deficiência do processo de escolha para o adequado desempenho do cargo
Mirando Ulisses e voltando à questão posta, é hora de trazer para reflexão um outro ponto importante: quando se passa do processo de escolha para o exercício efetivo do cargo, ocorre naturalmente uma profunda alteração do quadro institucional de incentivos e restrições.
Em outras palavras, deve-se atentar para o fato de que os estímulos externos (incentivos) e as condições de contorno (restrições) que atuam sobre o candidato a um dado cargo público são muito diferentes daqueles que operam sobre o agente estatal no exercício desse cargo.
Desta feita, o reconhecimento de que incentivos e restrições são fundamentais para a conformação do comportamento do agente estatal e a percepção de que esses elementos são dinâmicos e mudam radicalmente entre o processo de seleção e o exercício do cargo implicam que o processo de escolha é, por natureza, insuficiente para promover o interesse público no desempenho do cargo.
Confiar a integridade do exercício de um cargo apenas na correção do seu processo de escolha é como dirigir com os olhos colados no retrovisor.
Com a marcha do carro, a estrada adiante muda e o que vemos pelo retrovisor pouco ajuda. O mesmo se aplica para a prospecção do comportamento do agente estatal feita a partir de sua seleção.
Assim, fica evidente que mais importante que o debate sobre a melhor forma de acesso ao cargo de PGR é o debate sobre a natureza dos incentivos e das restrições que efetivamente atuam sobre o ocupante do cargo de PGR.
Uma corrente para o PGR – e também para outros cargos públicos de proa
Se até mesmo o mítico e virtuoso Ulisses precisou ser acorrentado para não sucumbir ao canto das sereias, não é de surpreender que uma mudança substancial no quadro geral de influências exija uma reconfiguração dos incentivos e das restrições institucionais.
De fato, não existe nenhuma novidade no reconhecimento, pelo ordenamento jurídico brasileiro, de que influências ilegítimas podem entrar em rota de colisão com o interesse público, em situações que têm o potencial de degradar o desempenho da função do agente estatal.
Como exemplo, podemos lembrar a Emenda Constitucional nº 45, que estabeleceu um prazo de três anos para que o magistrado (art. 95, parágrafo único, inc. V, CF) e o membro do Ministério Público (art. 128, §6º, CF) possam exercer a advocacia no juízo ou no tribunal do qual se afastou por aposentadoria ou exoneração. No mesmo sentido, a Lei nº 12.813/2013 dispõe, entre outras medidas, impedimentos posteriores ao exercício de alguns altos cargos e empregos públicos federais, a exemplo de uma quarentena de seis meses para o exercício de algumas atividades específicas na iniciativa privada.
As normas acima referidas limitam-se a reconhecer um potencial conflito de interesses apenas no caso da influência de interesses privados externos sobre o agente estatal, o que é claramente incompleto e insuficiente. A captura do interesse público não ocorre apenas por influências de entidades privadas, mas também pela ação de outros agentes estatais.
Assim, independentemente da personalidade do agente estatal, é certo que a perspectiva de uma ascendência profissional é uma influência poderosa que tem o potencial de afetar seus interesses próprios e, por essa linha de ação, desviar sua conduta funcional do almejado implemento do interesse público.
Consequentemente, as mesmas razões que legitimam a imposição de quarentenas para que certos agentes estatais possam assumir atividades na iniciativa privada recomendam que restrições da mesma natureza sejam aplicadas também para a ascensão a novos cargos que não são preenchidos por meio de concurso público.
Uma regra restritiva dessa natureza teria a qualidade de frear incentivos que tendem a afastar a atuação funcional desses agentes estatais de proa da consecução do interesse público porque, sob o signo dessa restrição, de nada valeria a conquista da simpatia de parcela do eleitorado ou das bençãos do Chefe do Poder Executivo.
Uma quarentena dessa natureza, na parte que bloqueia temporariamente o acesso a cargos eletivos, desestimularia a eclosão de pulsões incendiárias que serviriam apenas para flertar com o populismo e que vão de encontro com o interesse público.
No mesmo sentido, a proibição provisória de ascendência a outros cargos de escolha do Presidente da República enfraqueceria o desenvolvimento de impulsos adesistas que colocam em risco a autonomia funcional que sempre anima ofícios dessa natureza e que, por essa razão, também atuam contra o interesse público.
Assim, para além da discussão da lista tríplice, é necessário debater e implementar restrições que proíbam, por um período razoável, a candidatura do PGR a cargos eletivos e também a sua nomeação a outros cargos de indicação do Presidente da República.
E pode-se ir um pouco além: a história recente, pós-Constituição Federal de 1988, recomenda que tais restrições devam atingir também outros altos cargos públicos como Ministros de Tribunais Superiores, Advogado Geral da União, Ministros do Tribunal de Contas da União (TCU), Presidentes de Agências Reguladoras, Comandantes Militares etc..
Desagradando a gregos e troianos
De líquido, após a filtragem do volumoso palavreio que estufa a retórica jurídica, um olhar econômico sobre a escolha do PGR propicia pelo menos quatro ganhos significativos: a) a “desromantização” do conceito de interesse público; b) o reconhecimento da importância do interesse próprio dos agentes estatais; c) a percepção de que a escolha diz pouco para o desempenho do cargo de PGR e; d) o papel basilar que novas regras restritivas que bloqueiem temporariamente o acesso a cargos “sedutores” têm para a convergência da atuação funcional do PGR escolhido com o interesse público.
Apesar desses méritos, é certo que esse enfoque metodológico proposto, por reduzir a importância relativa do processo de escolha do PGR, desagrada a gregos e troianos, o que é mais uma má fortuna para os brasileiros.
* Adjame Alexandre Gonçalves Oliveira é procurador da República. Especialista em direito e economia pela UNICAMP.
Artigo publicado originalmente no site Jota