*As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a posição da ANPR.
A sistemática de poder na sociedade se constrói sobre uma base de aparente neutralidade de normas e instituições, quando na verdade, na prática, as marcas sociais e as dissidências se mostram evidentes e em descompasso com o objetivo de igualdade estabelecido na Constituição Federal. A construção de ferramentas normativas que estejam desassociadas da análise social e de impactos não neutros acabam sendo instrumentos de discriminação e não possibilitam a realização de justiça efetiva.
No presente ensaio, busca-se evidenciar a incompletude ou até desacerto dos tipos penais que visam a responsabilização daqueles que praticam violência política de gênero quando o crime é praticado contra mulheres negras, bem como mulheres LGBTQIA+. O tipo penal de violência política de gênero do artigo 356-B do Código eleitoral alcança como vítima desse contexto a mandatária de cargo eletivo e a candidata em ano eleitoral, nos termos a seguir:
Art. 326-B. Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Aumenta-se a pena em 1/3 (um terço), se o crime é cometido contra mulher:
I – gestante;
II – maior de 60 (sessenta) anos;
III – com deficiência.
O crime coloca como vítima a mulher que sofre a violência por conta de sua condição de gênero ou a sua cor, raça ou etnia. O tipo distribui em marcas sociais dissidentes alternativas a incidência da conduta criminosa, colocando como agravantes para aumento da pena a condição de gestante, de idade ou de deficiência.
O tipo acaba trazendo alguns prejuízos para responsabilização do que se visualiza na prática, já que a maior parte das violências nesse aspecto acabam sendo cometidas contra mulheres negras ou mulheres LGBT, que, por somarem duplas e até triplas formas de discriminação, acabam tendo a sua situação avaliada e eventualmente responsabilizada como se essas marcas não tornassem aquele caso ainda mais grave.
A interseccionalidade é uma lente utilizada para situações onde a mulher possui mais de uma forma de opressão incidindo em sua condição social e foi inicialmente trabalhada no âmbito do feminismo negro, para indicar situações onde a mulher negra acabava sofrendo o duplo de discriminação pela sua condição de gênero e raça em relação à mulheres brancas, que demandaria uma atenção especial com esse aspecto para construção de agendas políticas e legislações condizentes com a finalidade real de inclusão e proteção de grupos vulnerabilizados.
De acordo com as estatísticas, a baixa representatividade de gênero alcança níveis ainda mais alarmantes quando consideramos a representatividade de mulheres negras nos espaços eleitos, rechaçadas desses locais não apenas por serem mulheres, mas por conta da sua condição racial, que reforça ainda mais a sua presença na margem da política nacional.
De igual modo, devemos avaliar a questão da mulher LGBT, em especial a questão das mulheres trans, que sequer possuem um tratamento explícito no tipo penal e dependem de uma interpretação que vem sendo reproduzida no âmbito dos tribunais, garantindo a leitura da condição de mulher como uma condição de gênero. Contudo, é inegável que assim como as mulheres negras, a opressão e os níveis de violência contra esse grupo é maior que a opressão apenas por conta do sexo em si, situação que igualmente demandaria uma técnica legislativa que permitisse a responsabilização e resposta estatal efetiva para os atos de violência contra esse grupo.
A situação para as mulheres trans no espectro dessa tutela penal de violência política contra a mulher (artigo 326-B/CE) é ainda pior, uma vez que uma das agravantes eleitas pelo legislador envolve a condição de gestante da vítima, não que tal condição não deva ser considerada grave, mas pelo fato de estar expressamente prevista e em exclusão de uma agravante para a questão sexual, deixando ainda mais em evidência qual a mulher eleita para ser protegida dos atos de violência política.
No plano internacional, o Relatório de Reconhecimento dos Direitos das Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo (LGBTI) nas Américas elaborado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2019 recomendou aos países que garantissem espaços de participação política e construção de políticas públicas a pessoas LBGTQIA+ para verem refletidas suas reais necessidades e demandas. A Opinião Consultiva 24 da Corte IDH, aliás, determina que os Estados combatam a “discriminação por percepção”, que acontece quando uma pessoa é discriminada a partir da percepção social a respeito de sua relação com um grupo social, e garantam exatamente os mesmos direitos às pessoas LGBTQIA+ que sejam assegurados à comunidade cisheteronormativa.
A Lei 14.192/2021 representa significativo avanço na luta pela igualdade de direitos, no entanto, ressente-se de marcadores estruturais de nossa sociedade que também se fazem presentes no Parlamento, sobretudo por não contemplar, de forma mais eficaz, mulheres que são dupla ou triplamente vítimas dessas condutas pela sua atuação política, partidária ou eleitoral e pela sua identidade de gênero e raça.
Enquanto as alterações sociais e legais não ocorrem, o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro contempla instrumentos para tutelar, na esfera penal, a um só tempo, os direitos políticos das vítimas e também os direitos fundamentais individuais da igualdade de raça e da identidade de gênero.
É muito importante que os operadores do sistema de justiça estejam atentos para a efetividade da norma penal de proteção dos bens jurídicos tutelados tanto pelas Leis 14.192/21 e 14.197/21, quanto pela Lei 7.716/89, com as recentes alterações introduzidas pela Lei 14.532/2023, que tipificou como crime de racismo a injúria racial, tratados nas dimensões coletiva e individual. Também tornou a injúria racial crime de ação penal pública incondicionada, além de proteger a mulher transexual, diante da tutela penal estabelecida no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, ocasião em que a Suprema Corte equiparou, para fins penais, a homofobia ao racismo.
Certamente, apenas as circunstâncias do caso concreto, estabelecida investigação criminal com a perspectiva de gênero e raça, é que poderão apresentar, com o grau de certeza necessário para a deflagração de ação penal, os elementos do dolo do autor do fato, e assim, verificar-se se além do crime de violência política de gênero, praticado na perspectiva política, também haverá violação dos direitos fundamentais das vítimas quanto à igualdade e não discriminação e, nessas situações específicas, a persecução criminal deverá ocorrer sob a ótica de todos os crimes incidentes, em situação de concurso.
*Publicado originalmente no Jota