A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) realizou, nesta terça-feira (2), a "Mesa de Debates: Território Indígena e Marco Temporal: avanços e retrocessos", na Procuradoria da República no Distrito Federal (PR-DF), em Brasília (DF).
O evento, apoiado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Fundação Getúlio Vargas (FGV), foi transmitido ao vivo pelo canal da ANPR no Youtube.
“É um prazer para a ANPR trazer à discussão um tema que está longe de estar pacificado e demanda de todos nós um eterno olhar sobre a questão da definição de territórios, sua delimitação e sua demarcação. O marco temporal assumiu um contexto especialmente perigoso pelas leituras extremamente restritivas e por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que ainda demanda uma série de esclarecimentos. E, claro, por conta das diversas pressões pelo posicionamento do Congresso Nacional. A ideia da ANPR com este debate é trazer elementos que nos fortaleçam o conhecimento e a capacidade de diálogo”, afirmou o presidente da ANPR, Ubiratan Cazetta, ao abrir o evento.
A iniciativa da ANPR ocorre num momento de embate jurídico e político em torno da temática. No fim do ano passado, O Congresso Nacional promulgou a Lei do Marco Temporal (14.701/2023), dois meses depois de o Supremo afirmar o caráter originário dos direitos constitucionais indígenas e caracterizar a tese do marco temporal como inconstitucional.
A deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) classificou a nova legislação como um “marco de genocídio”. "Nós não temos uma vacina ainda para combater a violência cometida aos territórios indígenas, porque a vacina está no processo de decisão da demarcação dos territórios. Nós não vamos pensar em combater violência territorial se não for a garantia da demarcação”.
A presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana destacou que os desafios vão para além da demarcação de terras. “A Constituição já garante uma organização social, a nossa diversidade, uma obrigação que muita gente coloca dúvida dessa responsabilidade da União de demarcar, proteger e fazer respeitar todos os bens. O dever não para somente no processo de demarcação de terras indígenas, mas na proteção de uma questão coletiva, que poucos ainda ousaram a aceitar essa coletividade. O nosso direito é muito tratado no âmbito individual. Mas quando se trata de povos indígenas nos deparamos com essa coletividade”.
O advogado e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Daniel Sarmento destacou que a recente legislação, além de contrariar a Constituição Federal, é um risco ao futuro da humanidade.
“O propósito do constitucionalismo é acima de tudo proteger direitos, especialmente, de grupos vulnerabilizados diante do arbítrio de grupos socialmente majoritários. A Constituição é para isso ou ela não é para nada. Não faz nenhum sentido esta interpretação. Como cereja do bolo, cabe falar da questão da crise climática. A gente está discutindo direitos centrais, mas a gente também está falando da possibilidade de ter um planeta em que a vida seja possível. Estudos mostram que nos territórios indígenas existe preservação da floresta superior da que existe em uma unidade de preservação”, alertou o acadêmico.
Dados recentes da Funai apontam que o Brasil conta com 477 terras indígenas regularizadas. Considerados os territórios em processo de demarcação são: 132 em estudo, 48 delimitados, 67 declarados pelo Ministério da Justiça. Constam ainda, aproximadamente, 490 reivindicações (qualificadas e não qualificadas. O cenário foi apresentado pela procuradora da República Márcia Zollinger, que ressaltou o atraso do país em cumprir o comando constitucional.
“A gente vê que há aproximadamente 800 terras indígenas ainda não demarcadas. Isso nos dá um panorama muito claro de que se estamos falando de direito fundamental, isso aqui nos dá o quadro de uma proteção insuficiente, deficiente. Ou seja, o comando constitucional do artigo 231, a despeito de termos passado quase 36 anos de promulgação da Constituição, ainda não foi completamente cumprido. Os povos indígenas continuam na situação de não ter a plenitude de seu direito territorial alcançado”, lamentou a membra do MPF e integrante da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal e do Grupo de Trabalho Demarcação.
Reiteradamente o representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Dinamam Tuxá, classificou a tese do marco temporal como uma iniciativa política.
“Essa tese, na nossa avaliação, é política. Ela não é uma tese jurídica, ela se tornou jurídica por conveniência. Há inúmeros retrocessos que já estão gerando lesões irreparáveis. Se não houver uma decisão, o quanto antes, muitas dessas lesões nós não vamos conseguir reverter. E eu digo lesões no sentido mesmo de lideranças sendo assassinadas, lideranças sendo ameaçadas, territórios sendo invadidos”.
O aspecto cultural também foi lançado à reflexão. O advogado do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e membro da rede de advogados da Apib, Ivo Makuxi, lembrou a diferença do conceito de territórios para os indígenas.
“O marco temporal tem tirado nosso sossego, nossa paz e nossa tranquilidade. Precisamos avançar muito na consolidação dos direitos constitucionais dos povos indígenas. O marco temporal é uma tese antiga, ultrapassada. As nossas propriedades coletivas é que nos protegem. Os territórios indígenas, para nós, é que nos garantem dignidade, vida e o bem viver. Os bens comuns, para nós, são muito mais do que recursos que nós podemos nos apropriar”, salientou.
“Não é um desafio só de hoje. É um desafio que vem acompanhando toda a causa indígena. E a gente fala, hoje, de direito originário, não só no sentido da cosmovisão indígena, mas também porque esse direito foi reconhecido desde sempre, porém nós temos um problema de efetividade, desde o seu princípio. A partir do momento em que esse direito foi reconhecido, ele também foi esvaziado. E esse é o ponto. O marco temporal é um esvaziamento desse direito”, avaliou a consultora jurídica do Ministério dos Povos Indígenas Alessandra Vanessa.
“Foi uma satisfação contar com a presença de todos. Este é um tema que mobiliza a sociedade mais do que possamos imaginar”, avaliou a vice-presidente da ANPR, Luciana Loureiro, ao finalizar o debate.
Assista ao evento na íntegra: