O lançamento foi anunciado, nesta terça-feira (14), pela vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Luciana Loureiro, durante o seminário "O papel do MP na aplicação do Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero (CNJ), realizado pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), na sede da instituição, em Brasília (DF).
O material será produzido a partir do próprio debate, que reuniu especialistas para trocar experiências e discutir a aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero – do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no Ministério Público brasileiro.
“A ANPR, com o objetivo de difundir as discussões tão proveitosas, produzirá um podcast com o conteúdo deste debate, em virtude da relevância do tema e da qualidade do seminário”, anunciou Luciana Loureiro, que atuou como orientadora pedagógica e mediadora do evento.
O evento foi dividido nas seguintes abordagens:
Painel 1: “O uso do Protocolo nas decisões judiciais e suas dificuldades. Discussões sobre adaptação do Protocolo à atividade-fim do MP e seus desafios”
Após apresentar conceitos básicos, a procuradora da República Michele Diz Y Gil Corbi apontou alguns dos estereótipos de gênero que emperram essa implementação, a exemplo da cultura de que tarefas domésticas são tipicamente femininas.
“Estereótipos de gênero reforçam as desigualdades. As características, normalmente, atribuídas a homens e mulheres acabam reforçando uma assimetria econômica e de poder e a dominação de homens sobre as mulheres.”
Para a procuradora da República Nathália Mariel, é preciso fazer uma análise mais profunda da norma do CNJ, que inclui na questão de gênero outras proteções.
“O papel do protocolo seria colocar em palavras diretas e óbvias a necessidade de identificarmos a importância de uma lente de gênero, de um gênero que não pode soltar as mãos da questão da raça, da questão étnica. E o protocolo trabalha a questão da raça e da identificação de outros grupos”, salientou.
A desembargadora federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região Ana Carolina Roman, ao discorrer sobre os passos estabelecidos no documento, alertou para as desigualdades estruturais. “A audiência é um ponto nevrálgico, na medida em que, se não conduzida na perspectiva de gênero, pode se tornar um ambiente de violência institucional de gênero. A gente tem que interpretar as normas sem os estereótipos de gênero e entender que este é um processo contínuo e constante na nossa atuação”, frisou.
Qual a importância de todo o sistema de justiça atuar com a perspectiva de gênero e não apenas a magistratura? O questionamento foi feito pela procuradora regional da República Carolina Maciel da Costa, que definiu como procedimento imprescindível para coibir a reprodução sistemática da violação de direitos humanos das mulheres ao longo da história.
“Violação, inicialmente, por um sistema que não nos protegia. Posteriormente, por um sistema que passa a nos proteger, mas não é aplicado. Existe uma lacuna entre o que a norma diz e o que é realmente aplicado. Não há solução que não passe por essa reflexão”, destacou.
Painel 2: “O uso do Protocolo na área eleitoral”
O tema foi tratado pela diretora-geral da ESMPU, Raquel Branquinho, também coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento da Violência Política de Gênero da Procuradoria-Geral Eleitoral do MPF.
“A mulher sofre violência com a questão da interseccionalidade da raça, condição social, identidade de gênero, violência política, violência em todas as esferas da nossa sociedade. No campo político é o motivo do maior afastamento da representatividade feminina. O mais importante nesta temática é saber que a atividade do GT e a aplicação da Lei 14.192/2021 e de outras leis, que constituem um microssistema de políticas afirmativas na ótica do ordenamento jurídico eleitoral, apenas serão implementadas e têm a mínima efetividade, se nós trabalharmos e aplicarmos a partir da ótica das lentes de gênero”, defendeu.
Numa narrativa mais ampla sobre a presença da mulher nos espaços de poder, a procuradora da Justiça e diretora da Associação dos Membros do Ministério Público de Pernambuco (AMPPE), Bianca Stella Azevedo, reforçou que o sistema de Justiça precisa atuar em rede.
“A gente percebe que quando a mulher sai do ambiente privado - onde se discute a violência doméstica, e se movimenta em outros espaços, frentes e lideranças, algum tipo de violência vai acompanhando. A causa da violência reside na desigualdade. A gente tem um protocolo de julgamento com perspectiva de gênero, mas o julgamento no Judiciário não é uma justiça completa se não for a de todos os outros atores envolvidos”, explicou.
Painel 3: “O uso do Protocolo na área criminal. Casos Práticos”
A subprocuradora-geral da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen apresentou um histórico de legislações sobre direitos de mulheres e meninas, no intuito de lembrar que a criação do Protocolo de Julgamento na perspectiva de gênero ocorre após o surgimento de uma sequência de normas sobre a temática.
“O protocolo de gênero tem a ver com a nossa atuação no sistema de Justiça, com a formação das nossas carreiras e com a forma como nós, nas nossas carreiras, vamos atuar em determinados processos. E tudo implica numa mudança que é menos jurídica e mais mental. Uma coisa é quando você muda uma legislação. Esta questão do Protocolo de gênero implica numa mudança total na forma de como atuamos nos processos”, esclareceu.
Relatar casos em que a perspectiva de gênero foi desprezada em julgamentos foi maneira que a promotora de Justiça da Paraíba Dulcerita Soares Alves escolheu para alertar sobre uma urgência na mudança de olhar por parte do sistema de Justiça, despido de estereotipias.
Um deles foi o da paraibana Márcia Barbosa de Sousa assassinada em 1998 por um então parlamentar.
“O julgamento foi todo permeado por estereotipo de gênero. Ou seja, quem foi julgada foi a Márcia. Ele foi relatado no julgamento como pai de família, que se deixou levar pelos encantos da jovem mulher. E que cometeu um erro, e que ela até merecesse morrer. Só em 2007 foi condenado, mas não preso, porque faleceu em 2008. E ainda foi decretado luto oficial”, contou indignada.
Painel 4: “O uso do Protocolo na área trabalhista”
As procuradoras do Trabalho Danielle Olivares Corrêa e Carolina Marcante expuseram como a norma do Conselho Nacional de Justiça influencia na atividade e na própria relação de trabalho na instituição.
“Na Justiça do Trabalho, são inúmeras as demandas que vão exigir o olhar sob a perspectiva de gênero, porque na relação de trabalho há uma assimetria no contrato de trabalho. Você tem uma cultura social machista, sexista, em que a divisão sexual do trabalho imposta às mulheres repercute de forma muito direta no trabalho, vai produzindo desigualdades, que vão levando a outras desigualdades nas relações sociais. É muito importante quando da aplicação do direito observar esse protocolo. Mesmo as leis feitas para a proteção da mulher foram feitas sob a ótica masculina”, afirmou Daniele Tavares.
Assédios, humilhações, exigências abusivas, elogios impertinentes foram alguns dos exemplos dos objetos de investigação enumerados por Carolina Marcante, que chegam ao ramo do MP onde atua.
“Como conciliar a maternidade e o trabalho? Isso é indagado no processo seletivo. E aí vocês me perguntam: isso é indagado a um homem? Ele tem três filhos. Ele vai ser indagado sobre isso? Infelizmente, é uma situação que se replica nacionalmente”, destacou a procuradora, que também compartilhou casos julgados com e sem perspectivas de gênero.
Conferência de Encerramento: “O Protocolo de Gênero e o Direito Internacional”
“Direito Internacional e Protocolo para julgamento com a perspectiva de gênero têm tudo a ver”, garantiu reiteradamente a procuradora regional da República Denise Neves Abade.
Ao explicar a origem dessa relação, ela contou que o México inaugurou a iniciativa, em 2013, mas não por opção e sim após condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
“Se não fosse o Direito Internacional não teríamos o protocolo. Nem o Chile e nem o Uruguai. Igualdade e perspectiva de gênero são duas faces da mesma moeda. Começando lá atrás na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completou 75 anos, já existe esse princípio transversal. Na Convenção Americana de Direitos Humanos já existe o princípio da igualdade que é transversal e necessário a todos os princípios”, finalizou.
O diretor-adjunto da ESMPU destacou a importância do debate.
“Não há dúvida de que todas as questões que circundam a perspectiva de gênero também estão envolvidas no forte viés transdisciplinar”, defendeu Manoel Jorge e Silva Neto.
Ao encerrar o evento, a vice-presidente da ANPR elogiou a qualidade do debate e a importância de o Ministério Público dialogar internamente e com outras instituições.
Acompanharam presencialmente o seminário alguns diretores da ANPR: Lívia Tinôco (diretora secretária), Raquel Teixeira (diretora de Eventos), Renata Muniz (diretora de Assuntos Jurídicos) e Igor Spindola (diretor de Assuntos Corporativos).
Acesse o seminário na íntegra: