“Não há de prevalecer um entendimento restritivo e que desconsidera as peculiaridades do Ministério Público Federal".
A afirmação é do presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ubiratan Cazetta, em referência à retomada do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6238, pela qual a entidade, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e a Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT) contestam dispositivos da Lei n°13.869/2019 – a chamada Lei de Abuso de Autoridade.
A expectativa da ANPR em relação à decisão do STF não se restringe à análise do mérito. Ocorre que, quando do ingresso da ADI, a Advocacia-Geral da União (AGU) suscitou, em sede de preliminar, a ilegitimidade da ANPR e ANPT para integrarem o polo ativo da demanda. O então procurador-geral da República, Augusto Aras, seguiu o mesmo entendimento.
“Como se vê da petição inicial, os dispositivos legais impugnados afetariam todos os membros do Ministério Público, e não apenas os integrantes do Ministério Público Federal. Assim, a ANPT e a ANPR hão de ser excluídas do polo ativo, seguindo esta ação direta de inconstitucionalidade apenas sob autoria da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, a qual tem legitimidade para instaurar controle abstrato de constitucionalidade em face de norma que atinja membros de todo o Ministério Público brasileiro”, apontou no parecer.
“A legitimidade da ANPR para propor ações de controle concentrado decorre do reconhecimento da importância do Ministério Público Federal, das peculiaridades a que submetidos os seus membros e uma leitura restritiva contribui apenas para o amesquinhamento de nossas funções. O importante é que, em diversas outras ocasiões, o próprio STF reconheceu a legitimidade e temos certeza que o fará novamente.”
Em 27 de fevereiro deste ano, o STF iniciou o julgamento da ADI 6238 e de outras ações que tratam de crimes envolvendo servidores públicos. A sessão destinou-se a ouvir partes e terceiros interessados na questão. Durante sustentação oral, o advogado Aristides Junqueira,ex-Procurador-Geral da República, atuando também pela ANPR, demonstrou que se trata de um argumento sem procedência.
“Eu represento aqui três associações. A ANPR, sim, embora seja contestada a sua legitimidade nesta ação, bem como a ANPT, que é a Associação do Ministério Público do Trabalho, mas eu diria que essa preliminar de legitimidade, que foi inclusive encampada proveniente da Advocacia da União, mas encampada pelo parecer do Ministério Público constante dos autos, essa preliminar não procede. Até porque, posteriormente, na ADIN 7237, proposta (...) pela ANPR, ela foi aceita inclusive no parecer do Ministério Público. Portanto, fica sem efeito”, rebateu Junqueira.
Para as associações, a Lei de Abuso de Autoridade criminaliza diversos comportamentos relacionados ao exercício da atividade-fim de procuradores, magistrados e integrantes das forças de segurança pública. Além disso, as definições de alguns crimes são extremamente vagas, imprecisas, indeterminadas e abertas, possibilitando diversas interpretações do que constituiria crime de abuso de autoridade. Por isso, as associações solicitaram concessão de medida cautelar.
Desta forma, quanto ao mérito, Aristides Junqueira teceu considerações à legislação e afirmou que a norma é uma desobediência à Lei Complementar 95/98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis.
“Realmente, e aqui vai não um argumento novo, mas penso que essa lei é o protótipo de desobediência à Lei Complementar 95. Essa lei diz sobre como é que se deve elaborar uma lei, como é que se deve redigir e também consolidar. No caso específico, os princípios postos nessa lei ou as regras postas nessa lei não foram observadas aqui. O artigo 39 do inciso 5º tem a mesma definição do artigo 1° do Código Penal, que diz “não há crime sem lei anterior que eu defina”. Isso aí está não só na Constituição, mas é repetido desde 1940, no Código Penal, no artigo 1° do Código Penal. E definir é delimitar. Etimologicamente vindo do latim, é isso o que é definir. Portanto, não se permite no Direito Penal termos vagos, termos imprecisos, abrangentes de qualquer situação em que eu possa dizer "ah, eu posso criminalizar tal conduta", “aqui isso não é possível”. Por essa lei, quase todos os dispositivos têm essa lacuna ou essa extensão indevida de tipo penal”, afirmou.
Ele salientou a falta de um elemento indispensável na lei penal: a taxatividade. Em seguida, apontou as inconstitucionalidades dos dispositivos impugnados.
“Artigo 31. Estender, injustificadamente, a investigação, procrastinando em prejuízo do investigado ou fiscalizado.” Quer dizer, eu não preciso esperar a prescrição. Se eu resolver achar que um procedimento investigatório está demorando muito, eu posso dizer que o Ministério Público ou a polícia que incide nesse dispositivo penal está cometendo crime. Parece-me um absurdo. E mais. No parágrafo único desse artigo, está dito “Incorre na mesma pena quem, inexistindo o prazo para execução ou conclusão de procedimento, o estende de forma imotivada, procrastinando em prejuízo do investigado ou do fiscalizado. Ou seja, continua a mesma, não há prazo para terminar. Mas se tiver demorando demais, embora não haja prazo para terminar o procedimento, há um crime a ser punido como abuso de autoridade. E assim outros dispositivos”, enumerou.
O atual Procurador-Geral da República, que tem reservado suas sustentações orais para casos específicos e mais graves, destacou, em sua manifestação, que a Lei de Abuso de Autoridade, ao criar tipos penais vagos, está em desacordo com o propósito da Constituição Federal de garantir ao Judiciário, ao Ministério Público e a agentes políticos independência para exercer as funções. Para Paulo Gonet, não pode haver dúvida acerca do comportamento que é objeto de punição.
“Não é que não possa haver o crime de abuso de autoridade. Evidentemente que deve haver. Deve haver a punição do abuso de qualquer poder que alguém esteja investido. A questão é, esse abuso tem que estar bem definido. Então, talvez esse seja um parâmetro para avaliar cada um dos dispositivos que estão sendo arguidos de inconstitucional neste caso."
Após pontuar problemas em outros dispositivos, Paulo Gonet lembrou que já existe um parecer do MPF pelo não conhecimento e improcedência das ações. Destacou que respeita o posicionamento do antecessor e explicou que fez as considerações no sentido de contribuir com a decisão do Plenário.
“Essa minha manifestação não significa uma superação do parecer que foi feito pelo meu ilustre antecessor, mas apenas, quase que como um amigo da Corte, trazendo algumas reflexões, esperando que possam ser úteis à avaliação dos dispositivos os postos em discussão”, finalizou.
O julgamento do mérito da ADI proposta pela ANPR e de outras quatro ações ainda não tem data marcada.
Assista às sustentações.