Artigo sobre proposta de emenda à Constituição que prevê a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, de autoria do presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Fábio George Cruz da Nóbrega, foi publicado pelo site do Globo, na terça-feira (29). Confira:
PEC da segunda instância contra a impunidade
No último 8 de setembro foi apresentado, na Câmara dos Deputados, pelo deputado Fábio Trad (PSD-MS), o relatório da Proposta de Emenda à Constituição 199/19, que prevê a execução de penas a partir da condenação em segunda instância. O substitutivo por ele apresentado pode levar a um significativo aperfeiçoamento do sistema judicial brasileiro, garantindo, ao mesmo tempo, celeridade na conclusão dos processos e afastamento da sensação de impunidade.
A proposta passa a considerar o trânsito em julgado de todas as causas a partir da decisão colegiada de segunda instância, mantendo a previsão, por outro lado, da possibilidade de interposição de recursos especial e extraordinário, sem efeito suspensivo, entretanto.
A mudança viria em boa hora. O diagnóstico atual é dramático. Temos um sistema judicial que não funciona adequadamente, com quatro instâncias de deliberação, e demandas que duram 10, 15, 20 anos para alcançar a solução final. O excesso de recursos desvia o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça de suas missões originárias e desvaloriza as duas primeiras instâncias do Poder Judiciário brasileiro.
O sistema atual traz enorme incentivo à protelação, chicanas jurídicas, e gera profundo impacto negativo na sociedade, pela sensação generalizada de impunidade. Aqueles que violam a lei, sistematicamente, sabem que, contando com bons advogados e com recursos financeiros e processuais, não terão de cumprir pena alguma, ainda que venham a ser condenados. Isso dificulta, sobremaneira, a punição de práticas como corrupção, lavagem de dinheiro, peculato e outros crimes graves que são cometidos por representantes das classes mais privilegiadas. São esses, claramente, os beneficiados pela impunidade decorrente do sistema atual.
Esse quadro, cria, ao mesmo tempo, insegurança jurídica e descrédito no Poder Judiciário, dificultando a coexistência social, o pendor no cumprimento da lei e o desenvolvimento econômico. Quem investe em um país que demora 20 anos para resolver, definitivamente, uma causa?
A importância da discussão em tela aumentou consideravelmente, vez que o STF alterou, no fim de 2019, a sua jurisprudência consolidada, que vigorou de 1941 a 2009 e também de 2016 a 2019, que permitia a execução provisória da pena a partir da condenação em segunda instância.
A PEC 199/19 é fundamental por possibilitar a execução imediata das decisões de segundo grau, observado o duplo grau de jurisdição, como ocorre na grande maioria das democracias modernas, e prevê diversos tratados internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos.
Frise-se que não se pode falar em violação ao princípio da presunção de inocência, se o acusado foi condenado nas duas instâncias iniciais, exatamente aquelas que podem definir a culpa de alguém pela prática de um crime. Somente as duas primeiras instâncias decidem sobre fatos e provas. Apenas elas apontam se alguém cometeu o crime de que foi acusado. Tendo essa afirmação sido positiva, o STJ e o STF não podem rever isso. Tratam, na verdade, apenas de questões de direito.
E, ainda que assim não fosse, é bom destacar: são irrelevantes as reversões de condenação no âmbito do STJ e no STF por meios de recursos especial e extraordinário. Desde a implantação do regime da repercussão geral no STF, há 13 anos, apenas uma única absolvição foi proferida a partir desse expediente. Da mesma forma, é insignificante o índice de reversão de condenações no STJ pelo instrumento: 0,62%.
Um sistema não pode funcionar de forma tão morosa e inadequada, como ocorre, ancorado em exceções. Para casos excepcionais, a PEC 199/19 resguarda a possibilidade de obtenção de efeito suspensivo no STJ e no STF, sem falar na possibilidade de impetração de habeas corpus.
Finalizo lembrando as palavras de Aristóteles, um dos grandes filósofos da Humanidade, que influenciou, certamente, todo o pensamento ocidental. Para Aristóteles, a justiça é a maior das virtudes. E justiça é ato de meio-termo, que busca se afastar dos extremos. Algo que se situa, portanto, entre a injustiça por falta e a injustiça por excesso.
As mudanças aqui discutidas têm o condão de evitar ambas as formas de injustiça, num país tão desigual como o nosso. Seja a que peca por falta, diante do sentimento de frustração das vítimas de todo um país por verem acusados condenados por crimes graves que nunca cumprem pena; seja a que peca por excesso, decorrente da inesgotável possibilidade de recursos e incidentes processuais previstos para que alguns, muito poucos, privilegiados, continuem a se considerar imunes ao alcance da lei.
Fábio George Cruz da Nóbrega é presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República