O papel dos membros do Ministério Público Federal (MPF) de todo o país é de protagonismo no enfrentamento ao racismo, à discriminação racial e a todo tipo de trabalho escravo contemporâneo. As iniciativas de procuradores e procuradoras, nos dias atuais, são uma reparação pelo passado escravista brasileiro.
Nesta semana, a atuação de membros no Rio de Janeiro resultou no pedido de desculpas do Banco do Brasil à sociedade e no anúncio de medidas por parte da instituição financeira para promover a igualdade e a inclusão étnico-racial, além de combater o racismo estrutural no país.
O inquérito civil conduzido pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro (PRDC/RJ) tem como base a manifestação de historiadores que, em pesquisa, constataram a participação, à época da escravidão, de sócios e diretores do banco no comércio clandestino de africanos. Revelaram, ainda, que a instituição teria lucrado com o tráfico mesmo após ser proibido no país.
“O pedido de perdão é um passo importante, que indica a importância de levarmos adiante esse debate e avançarmos nas discussões sobre a reparação da escravidão”, avalia Julio Araujo, procurador da República responsável pelo inquérito.
Ainda no Rio de Janeiro, o MPF acompanha as medidas para garantir a conservação, a proteção e a valorização do Cais do Valongo, sítio arqueológico, reconhecido pela Unesco como patrimônio da humanidade. Construído em 1811, o cais foi o principal ponto de desembarque e comércio de pessoas negras escravizadas nas Américas.
De acordo com a coordenadora adjunta da Comissão ANPR Raça da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Nathália Mariel, falar em democracia e em defesa dos direitos fundamentais significa incluir todos os brasileiros, sem distinção.
“A gente tem que incluir todos os grupos, especialmente, os que historicamente foram excluídos e que permanecem sendo excluídos. Aí entra a preocupação com a questão racial em diversos aspectos, na preservação cultural, na reparação histórica, na correção de desigualdade. A gente tem tido um enfrentamento muito interessante, por exemplo, aqui no Pará. É um trabalho muito intenso com as comunidades quilombolas, com os povos de terreiro. Serão firmados vários convênios na busca de proteção histórica desses espaços, no combate à discriminação, ao racismo e à intolerância religiosa”, destaca a procuradora da República.
Em 2022, levantamento da Câmara Criminal do MPF (2CCR) revelou que, à época, somente na primeira instância, os membros atuavam em 432 processos judiciais relacionados aos crimes de redução à condição análoga à de escravo, frustração de direitos trabalhistas e aliciamento de trabalhadores. Os dados revelaram o olhar de prioridade que os membros têm no enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo.
“Esse enfrentamento se dá em várias frentes. Existe o trabalho de persecução penal dos crimes relacionados ao racismo cuja atribuição é do MPF. Em outra frente, na tutela coletiva de direitos, a instituição confere lugar de destaque para a defesa dos direitos dos povos oriundos de quilombos, indígenas e outras comunidades tradicionais. A Procuradoria da República no estado do Rio de janeiro, por exemplo, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, mediou a transferência de mais de 200 peças de religiões de matriz afro-brasileira apreendidas entre os anos de 1889 e 1945, quando o Código Penal Brasileiro legitimava a intolerância religiosa, do Museu da Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro para o Museu de República, numa ação histórica para a valorização da cultura de matriz africana”, explica o procurador da República Rodrigo Golívio, que também integra a ANPR Raça.
ANPR Raça: uma luta interna por igualdades
Neste ano, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), criou a Comissão ANPR Raça, que desenvolve ações voltadas à promoção da igualdade racial no âmbito do Ministério Público Federal (MPF).
A preocupação da entidade ganha robustez na pesquisa “Perfil Étnico-Racial do Ministério Público brasileiro e acompanhamento das ações afirmativas do CNMP”, divulgada, neste ano, pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). De acordo com o levantamento, do total de membros que ingressaram nos últimos cinco anos no Ministério Público brasileiro, os negros representam menos de 20% (6,5% mulheres negras e 13,2% homens negros), ainda que os pardos e negros representem 56,1% da população do país (IBGE – 2022).
A ANPR Raça busca aprimorar os critérios no concurso para procurador da República e garantir maior diversidade na composição. Para isso, requereu a exclusão da cláusula de barreira (limitador do número de aprovados na primeira fase e segunda fase) da Resolução nº 15 do Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF).
O coordenador da Comissão, Julio de Castilhos, expõe ainda uma preocupação com a dificuldade que muitos sentem em se autodeclararem pardos ou negros.
“Esse é um problema histórico porque muitas vezes a pessoa vem com estereótipo. Ela não quer se reconhecer como negra, porque isso traz todo aquele passado de dor, de dificuldade que teve para chegar até aquele momento. Nós estamos criando, cada vez mais, um ambiente confortável para que a pessoa se reconheça como negra e queira participar e dar sua contribuição para a carreira de uma forma geral”, reforça.
Projeto Identidade
Outra iniciativa tomada pela ANPR foi o Projeto Identidade, que aumentou o otimismo da advogada Carmen Lúcia Ribeiro, de Teresina (PI), de mudar a própria história e de fazer história. Ela é uma mulher negra que atua junto às minorias. Inclusive, enquanto prestava informações para esta reportagem, Carmen estava num ônibus – seis horas de viagem, a caminho de uma comunidade quilombola, no Piauí. A advogada dedica todo tempo disponível aos estudos para realizar o sonho de se tornar procuradora da República.
“A maior barreira é o racismo estrutural, que é o definidor, diz onde a gente pode entrar e onde a gente permanece. As barreiras foram muitas para entrar, permanecer e concluir o curso de Direito. A labuta continua. O único tempo que me resta para estudar é à noite. Por maior que sejam as dificuldades, não há para mim a opção de desistir. Toda noite, é sentar ali e ousar sonhar o quase impossível. Estar dentro de uma estrutura em que, embora neste momento, seja quase 100% branca, me juntar a quem está lá e sente esse racismo estrutural, e fazer alguma coisa”, garante.
Carmen Lúcia foi uma das alunas do Projeto Identidade, uma iniciativa da ANPR em parceria com a Fundação Pedro Jorge (FPJ) e a Educafro com o objetivo de promover maior diversidade racial nos quadros do Ministério Público Federal (MPF), auxiliando a preparação de candidatos negros para o concurso de ingresso na carreira de Procurador da República. O projeto Identidade está sendo reformulado para aprimorar seu alcance e tentar agregar maior participação institucional.