“O comando constitucional, infelizmente, está longe de ser concretizado. Atualmente, somos o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ há 14 anos consecutivos”. A afirmação que soa também como um desabafo e pedido de basta é do coordenador do Grupo de Trabalho LGTBQIA+ - Proteção de Direitos, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF), Lucas Costa Almeida Dias.
O alerta ganha peso com a divulgação, nesta quarta-feira (28), do dossiê do Observatório de Mortes e Violências contra LBGTI+ no Brasil, que não ameniza em nada o cenário. O levantamento revela que, em 2022, houve 273 mortes de forma violenta de pessoas LGBTQIA+. Do total, 228 são assassinatos, o equivalente a 83,52% dos registros.
Como parte de uma instituição que tem entre as funções a defesa dos direitos sociais e individuais indisponíveis, os procuradores, em todo o país, atuam para mudar este cenário. As iniciativas ocorrem em várias frentes.
“A sociedade cisheteronormativa ainda tem dificuldades em lidar com aquilo que é diferente, que foge do padrão binário (homem x mulher). Essa data serve como lembrete que ainda há muito o que se fazer e lembrar que o MPF está alerta e atento em relação às questões da comunidade”, enfatiza o procurador Lucas Dias.
O trabalho cercado de desafios é também digno de reconhecimento em virtude de uma série de conquistas nos últimos anos. Foi a partir da provocação do Ministério Público Federal que o país comemora avanços como, por exemplo, o casamento homoafetivo e a alteração de prenome e sexo para pessoas trans (independentemente de cirurgia de afirmação de gênero).
Os passos são significativos também acerca de questões como a doação de sangue por homens gays, a possibilidade de ensino de gênero nas escolas, o enquadramento da LGBTfobia como conduta equiparada ao crime de racismo, a vedação à “terapia de reversão sexual” (conhecida como “cura gay”) e outros.
“A nós - membros e membras do Ministério Público Federal - cabe uma atuação direcionada para fomentar o Poder Público e estimular a execução de políticas públicas de forma adequada e de modo a contemplar o pleno exercício destes direitos. Nós temos, historicamente, uma atuação bastante destacada, inclusive, com conquistas judiciais importantes. E essas práticas precisam continuar sendo estimuladas no âmbito institucional para que possamos ser também atores destas transformações, necessárias rumo a uma sociedade mais igualitária, mais justa e mais fraterna”, reforça o procurador da República Sadi Machado.
Para ele, as políticas públicas direcionadas à população LGBTQIA+ ainda são ineficazes e incipientes. Uma crítica construtiva de quem entende que há ainda muito a ser feito, inclusive, no âmbito da própria instituição onde atua.
“Em âmbito institucional nós também precisamos combater qualquer tipo de discriminação e qualquer identificação de estereótipos negativos que possam colocar em risco o pleno exercício dos direitos das pessoas LGBT”, exemplifica Sadi.
Novo olhar
Uma sensação de estranheza levou o procurador regional da República João Carvalho a observar mais atentamente um processo de tráfico internacional de drogas, em que mulheres trans eram aliciadas a transportar entorpecentes. O olhar sensível resultou em mudança de paradigma.
“A ação penal inteira se referia ao nome masculino e, ao longo do processo, aparecia o nome feminino. E você veja o preconceito. Eram rés, que são mulheres trans com documentação, claro, do país de origem, não no nome social, mas no nome de batizado. E, no processo, até então, estavam sendo tratadas pelo nome de batismo e não pelos nomes que se identificavam. Todo processo que chegar com qualquer pessoa trans é direito fundamental se respeitar o nome pelo qual a pessoa se identifica. Foi interessante porque os nossos pareceres e as manifestações, se referindo ao nome social delas, fez com que o tribunal (TRF 3) também começasse a modificar essa catalogação e adotasse nos registros processuais os nomes pelos quais essas pessoas se identificam. É uma coisa pequena num universo de problemas que a comunidade LGBT enfrenta, mas é uma pequena mudança de paradigma”, recorda-se.
Quem preza pelo respeito ao outro também espera por respeito. O procurador regional João Carvalho sabe bem a importância de encontrar esse olhar sensível e comportamentos acolhedores.
“A nossa instituição, entre os órgãos federais, foi uma das primeiras a reconhecer a questão de registrar junto aos assentos funcionais o seu parceiro ou a sua parceira. Por exemplo, eu tenho registrado na instituição, como dependente no meu plano de saúde, o meu companheiro. Quando eu entrei na Procuradoria lá na década de 1990, era algo assim que para mim seria inadmissível. Se eu morrer, vou deixar para quem? A pessoa que eu de fato queria que recebesse será que eu posso registrar? E isso já existe. Isso para mim é uma evolução”, rememora.
Há quase três décadas como membro do MPF ele nunca escondeu a homossexualidade dos colegas e de servidores das unidades onde atuou. Mas sabe que nem todos encontram espaço e se sentem confortáveis para tratar da orientação sexual de forma transparente e livre de discriminação.
“Eu sempre acho que eu posso fazer um pouco mais no sentido de me visibilizar e encorajar outras pessoas a se visibilizarem. Todos sabem que eu sou gay, que eu tenho meu marido, mas quantos servidores poderiam se sentir muito mais confortáveis com a acolhida da gente? Muito mais do que apenas representatividade, eu acho que seria mais importante a gente ter um trabalho pedagógico na nossa instituição, que tem como seus eixos estruturantes a defesa dos direitos humanos, a defesa das minorias, ter sempre essa posição de acolhida, inclusive, com políticas de inclusão”, finaliza.