Neste mês, a subprocuradora-geral da República Ela Wiecko entrou para a lista dos associados aposentados. Com o ato publicado na primeira semana de 2023, a primeira e única mulher a presidir a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) deixa um legado de atuação intensa, principalmente, enquanto esteve na Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão.
Em entrevista exclusiva para a ANPR, Ela Wiecko fala a respeito da carreira, do Ministério Público Federal (MPF), dos desafios e da luta que abraçou para que as mulheres recebessem o mesmo tratamento e oportunidades dadas aos homens no âmbito do MPF e na sociedade. Confira!
ANPR: Quando ingressou no MPF?
Ela Wiecko: O meu ingresso no MPF se deu através do terceiro concurso público, em 1975. Eu só fiz esse concurso porque eu estava em Brasília. Em 1973, eu fiz um concurso para procurador e advogada do Incra, eu vim de Porto Alegre (RS), passei e fiquei na Procuradoria do Incra. Tanto que várias pessoas da Procuradoria do Incra fizeram o concurso para o MPF, como Geraldo Brindeiro, Helenita Acioli, Maria da Glória Temer, Ronaldo Bonfim, todos chegaram a subprocuradores-gerais da República. Eu tinha um grupo que se reunia pra estudar, então tivemos professores maravilhosos. O Cláudio Fonteles era o que capitaneava, mas tinha o professor Francisco de Assis Toledo que, à época, era subprocurador-geral, tinha Bento Bugarin, que depois foi ministro do TCU. Era só gente importante e eu aprendi muito. Eu estudava a revista trimestral de jurisprudência, lia os acórdãos e ia me afeiçoando sobre jurisprudência, o que naquela época na faculdade não era objeto de estudo. Então, foi assim que fiz o concurso, passei e entrei na primeira leva que eram cerca de 25 aprovados.
ANPR: Quais os desafios naquela época?
Ela Wiecko: 1976. Era época da ditadura. O Ministério Público Federal era uma instituição que defendia o governo e nós não podíamos dar pareceres, manifestações que fossem contrárias ao governo. Isso podia acontecer nas hipóteses de mandado de segurança. Questões mais sensíveis a gente sempre tinha que se manifestar a favor. Esse controle era feito pelos subprocuradores-gerais. Os pareceres que eu dava eram assim, tudo tinha que ser aprovado. É um tempo que eu lembro até com uma certa saudade, porque era pequeniníssima a Procuradoria-Geral e ficava no prédio do DASP e a gente tinha que dividir as salas. Aliás, quando eu estava no INCRA também. Um dia, quando vi, tinha outra pessoa na minha sala, porque não tinha espaço para todos e o mesmo acontecia na Procuradoria-Geral. Então, tinha esse desafio de a gente não ter independência como instituição. Eu era muito jovem, tinha 25 anos, estava aprendendo. Logo em seguida, nos anos 80, começaram os movimentos sociais. Muita efervescência política.
ANPR: E depois disso?
Ela Wiecko: Meu marido tinha passado no concurso de juiz federal e, no último dia, a vaga em Brasília foi fechada por um candidato de um concurso anterior, que resolveu ficar na cidade. Então, fomos para Curitiba porque eu nasci lá. Ficamos até 1984. Em Brasília, eu tive duas filhas. Em Curitiba, eu tive o terceiro filho. Lá, eu lembro da passeata pelas “Diretas Já”, eu ia pra rua, participei da fiscalização das primeiras eleições diretas, fui ser fiscal quando o primeiro partido era o MDB. A minha carreira acadêmica começou em 1982, e foi assim que se definiu essa minha inserção na questão penal, e começou também a discussão sobre Direitos Humanos. Fui do conselho penitenciário. Eu dava aula de Direito Penitenciário e ia com os alunos visitar a penitenciária, o manicômio. Enfim, o meu primeiro caso com indígena foi no inquérito da morte do índio Cretan. Em Florianópolis, fiquei até 1992. Foi quando eu me tornei feminista, comecei a participar das discussões de gênero, fui encarregada para o setor de Direitos Humanos. Eu lembro do caso do Campo de Instrução de Marechal Hermes, de agricultores expulsos.
ANPR: Como foi ingressar no MPF num contexto político e econômico tão marcante?
Ela Wiecko: Tudo era importante por conta dessa construção de um Brasil novo, um Brasil saindo da ditadura e também a instituição do Ministério Público pensada pra deixar de ser uma instituição que defendia o governo para passar a defender os interesses difusos e coletivos. Esse conceito era novo em processo civil. E lá em Florianópolis esses casos emblemáticos tinham relação com os direitos humanos. Entre eles, a atuação junto aos Xokleng, por conta da barragem norte que foi construída para defender o povo de Blumenau e de Itajaí das enchentes, mas com isso foi inundada a área que era fértil dos Xokleng. Foram os meus primeiros contatos de ir às terras indígenas, de receber os indígenas. E uma área que eu me inseri foi de a meio ambiente. Atuei também na investigação de falsificação de grilagens de terrenos de Santa Catarina. Eu gostava dessa coisa de investigar, de procurar caminhos. Quando eu cheguei em Brasília, do ponto de vista penal e de improbidade, um caso que me deu notoriedade foi o caso da pasta cor de rosa, uma pastinha que foi encontrada no Banco Econômico e que tinha uma lista de doações do banco para políticos ligados a Antônio Carlos Magalhães. Tinha governador, senador, isso ficou a cargo do procurador-geral da República, que era o Brindeiro. Em outros casos emblemáticos, acho que um que importa destacar é a primeira ação civil pública para reconhecimento de um território quilombola, que nós escrevemos e eu assinei também.
ANPR: A senhora foi a primeira e única mulher a presidir a ANPR. Fale um pouco sobre o essa experiência.
Ela Wiecko: Na época do meu mandato, discutiam-se reformas administrativa, previdenciária, tributária e do Judiciário. Em 1997, foi proposto o projeto de lei para alterar a lei de abuso de autoridade, apelidado de lei da mordaça. Uma das prioridades da diretoria e do colégio de delegados era o acompanhamento ativo dos projetos no Congresso Nacional e uma articulação com associações do Ministério Público, de juízes, de fiscais da previdência, entre outras. E a gente conseguiu barrar a aprovação desse projeto de lei e foi uma conquista. É interessante que essa situação de reformas está se repetindo agora e a lei do abuso de autoridade, que a gente conseguiu barrar, acabou sendo aprovada. Era um outro projeto de lei, mas a ideia era a mesma. No plano administrativo, a minha preocupação era preservar a memória da ANPR, que na gestão completava 25 anos de existência. E, agora, está completando 50 anos. Nós organizamos pastas e documentos, modernizamos a comunicação com os associados, que na época era por meio de cartas pelos Correios. Foi lançado o informativo eletrônico, iniciamos a publicação do jornal. Conseguimos reestruturar a Fundação Pedro Jorge, para assegurar a sua sustentabilidade, entendo que foi uma conquista. Houve a ampliação e reforma da sede da ANPR. Na época, ela estava no prédio da PGR, na avenida L2 Sul. Eu me preocupei muito em ampliar a articulação com associações, inclusive, internacionais. Foi um período de muita articulação política.
ANPR: O nome Ela Wiecko remete a uma luta incansável por tratamento igual a homens e mulheres. Essa bandeira a senhora carrega há décadas, não é mesmo?
Ela Wiecko: Em 1994, quando eu participei da comissão brasileira que preparou a posição do Brasil pra conferência de Beijing - a quarta conferência da mulher em 1995, eu tive como incumbência apresentar dados a respeito da representatividade das mulheres. Naquela época, nós não tínhamos nenhuma mulher no Supremo Tribunal Federal e foi a conferência de Benjing que firmou uma plataforma de ação para a transversalização das políticas de gênero. Então, eu me dei conta do número baixo de mulheres no Ministério Público Federal, que nunca passou dos 30% em relação ao total.
Eu lembro que, quando eu entrei na Procuradoria, fiquei chateada porque era um núcleo pequeno e as pessoas se encontravam muito em aniversários, festas, churrascos. E era sempre aquela coisa. Como eu era mulher, era meio que empurrada para ficar junto com as esposas dos meus colegas. E, o meu marido, ficava com os meus colegas procuradores. Isso me incomodava. Eu ficava um pouco com as mulheres, mas eu também ia lá para falar com os homens, porque me interessava pelas conversas que eram sobre política, sobre a instituição.
Em 2000, quando eu era vice-procuradora-geral, eu tive a grande oportunidade de falar com o procurador-geral para nós implantarmos políticas de equidade, de gênero e raça dentro do Ministério Público. Era um comitê simplesmente administrativo. Eu acho que a gente cresceu. As comissões se formaram nos estados. Depois, veio a comissão nacional do assédio. Eu sempre me candidatando. Eu percebia que a gente [mulher] é minoritária e os homens votam na reprodução do seu poder, do poder masculino. Essa consciência, essa necessidade de ter uma mulher procuradora-geral, faz diferença. Os homens precisam ser muito sensíveis para se dar conta e abrir os espaços, porque a tendência, como eu disse, é da reprodução de um esquema de poder que é masculino. Eu acho que nós temos que ter um estabelecimento de cotas no caso de concursos, senão a gente não vai conseguir chegar aos 50%. Acho que tem que ter regras nos editais, que sempre tem que ter mulheres, tem que ter autoras mulheres. Enfim, há vários mecanismos que nós conseguimos estabelecer. Se nós não temos um procurador-geral que esteja comprometido com a equidade de gênero ou se é um compromisso meramente retórico, a gente não vai adiante.
ANPR: E, especificamente, sobre a presença de uma mulher como chefe do MPF? Como garantir essa equidade?
Ela Wiecko: Tem que ter no planejamento estratégico, nós não temos perspectiva de gênero. Nunca se pensou que até o ano tal nós teremos que ter uma procuradora-geral da República. Nós tivemos uma procuradora-geral, mas será que vamos ter outra? Quando vamos ter outra? No CNMP a gente já teve conselheira? A gente não tem nenhuma garantia de equidade de gênero e com essas interseccionalidades todas, principalmente, a étnico-racial. A gente tem que pensar em compromissos muito claros de abrir espaço para as mulheres como procuradoras-gerais e exercendo outros cargos.
ANPR: Com a aposentadoria, a senhora se despede do MPF e de uma trajetória que é um legado para tantos que ficam e vão ingressar ainda na instituição. Quais os planos agora?
Ela Wiecko: Eu não tenho planos (risos). Eu continuo na universidade. Vou ter que me aposentar também em setembro deste ano. Mas, na universidade, eu tenho a possibilidade de continuar mesmo depois de 75 anos como pesquisadora, colaboradora. Eu tenho um grande número de pessoas para orientar em doutorado. Vou precisar de pelo menos uns quatro ou cinco anos para zerar essa orientação. Eu tenho um projeto de pesquisa que é sobre o ensino jurídico, como mudar o ensino jurídico para que ele tenha uma perspectiva de gênero, perspectiva de classe, étnico-racial, que prepare as pessoas para um direito que não seja de opressão. Eu não gosto muito de quando as pessoas dizem que precisam de uma sociedade mais justa, mais solidária. Eu não quero mais, eu quero uma sociedade justa, solidária que reconheça as diferenças e sejam fonte de construção e de diálogo.