Fortalecido pelas previsões estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, o sistema de controle passou por três décadas de evolução em nosso país, com a melhor estruturação dos órgãos públicos, a criação de agências autônomas, a atuação de agentes públicos independentes e a adoção de um modelo legal similar ao adotado pelas nações mais desenvolvidas do mundo.
No aperfeiçoamento legislativo, merecem destaque, nessa caminhada, a aprovação, em 1992, da Lei de Improbidade Administrativa, em 1998 da Lei de Lavagem de Ativos – aperfeiçoada por mudanças importantes aprovadas em 2012 – e, finalmente, em 2013 de duas importantes normas, a lei contra atos praticados por organizações criminosas e a que previu a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública.
Foi um período de intensa colaboração entre os órgãos públicos e de priorização, no debate feito pela imprensa e na própria atenção da sociedade civil organizada, do tema do enfrentamento à corrupção. Os avanços ocorridos no país no período já começam a ser vistos pelo retrovisor, entretanto, num momento da vida nacional em que retrocessos visíveis começam a ser observados e anunciados.
O alerta que se faz aqui parece importante diante do desfile, cada vez mais desinibido, de teses e autores que almejam por fim aos avanços republicanos produzidos no país nos últimos 30 anos, cuja intenção parece ser claramente a de “aproveitar o momento de desatenção para fazer passar a boiada”.
Sem qualquer vergonha ou rubor, agentes da cena pública apregoam a volta de institutos que não se harmonizam com os preceitos civilizatórios da Carta de 1988, como o nepotismo e a prevalência de servidores livremente nomeados em detrimento de servidores concursados, bem como alterações legislativas que podem transformar o Brasil numa espécie de pária internacional diante do possível abandono do modelo normativo de excelência aprovado através de décadas de esforço.
Foge-se, intencionalmente, do debate sobre os aperfeiçoamentos normativos e institucionais de que precisamos. É preciso resistir à agenda destrutiva posta em marcha e mobilizar a sociedade em torno de uma agenda construtiva.
É necessário, por exemplo, retomar a discussão sobre a possibilidade de execução da pena a partir de uma condenação por órgão colegiado.
Essa mudança precisa ocorrer. O diagnóstico é muito claro. Os recursos especial e extraordinários acabaram virando regra em nosso país, fazendo com que o nosso sistema processual tenha, regularmente, 3 ou 4 graus de jurisdição, com causas que demoram 10, 15, 20 anos em tramitação na justiça para terem uma solução. Um sistema moroso e absolutamente ineficiente.
O excesso de recursos desvia o STF e o STJ de suas importantes missões e desvaloriza as duas primeiras instâncias do Poder Judiciário brasileiro.
O sistema atual traz um incentivo enorme à protelação, ao recorrer por recorrer, muitas vezes para se obter a prescrição. Isso gera um profundo impacto negativo na sociedade, pela sensação generalizada de impunidade. E cria, sem sombra de dúvida, uma insegurança jurídica que dificulta a coexistência social, o pendor no cumprimento da lei e também o desenvolvimento econômico. Afinal, quem haverá de investir em um país que demora 20 anos para resolver uma causa?
Nas palavras célebres de Rui Barbosa: Justiça tardia nada mais é do que injustiça institucionalizada!
A importância da discussão em tela aumentou consideravelmente já que o STF alterou, no final de 2019, a sua jurisprudência consolidada que vigorou de 1941 a 2009, e também de 2016 a 2019, no sentido de que a execução provisória da pena poderia se dar a partir de uma condenação em segunda instância.
De maneira peculiar, portanto, entramos em uma espécie de jabuticaba pelo avesso, passando a aguardar o esgotamento de 4 instâncias de julgamento para que uma condenação venha começar a ser cumprida. Um sistema que não funciona, especialmente para aqueles que sabem que, contando com bons advogados e uma quantidade enorme de recursos disponíveis, dificilmente terão que cumprir alguma pena neste país, ainda que vierem a ser condenados. É isso que dificulta a punição da corrupção, da lavagem de dinheiro, do peculato e de outros crimes graves que são cometidos pelas classes mais privilegiadas deste país.
É preciso alterar esse cenário. A sociedade sente na pele os efeitos da injustiça cristalizada pela demora, pelo tempo.
Na grande maioria dos países, nas democracias modernas, é respeitado, sim, um duplo grau de jurisdição, um julgamento, portanto, em 2 instâncias, primeiramente perante um juiz e depois perante um órgão colegiado. Também é essa a previsão do art. 8º da Declaração Universal dos Direitos dos Homens, do art. 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Não faz o menor sentido dizer que a proposta em questão viola o princípio da presunção de inocência. Primeiro, porque esse princípio, como todos os outros, não é absoluto, devendo ser sopesado diante de outros importantes, como o da efetividade do processo e da sua duração razoável. Segundo, porque não se pode falar em presunção de inocência se o acusado já foi condenado nas duas instâncias iniciais, exatamente aquelas que podem definir a culpa de alguém pela prática de um crime. Só as duas primeiras instâncias decidem sobre fatos e provas. Só elas apontam se alguém cometeu ou não o crime de que foi acusado. Tendo essa afirmação sido positiva, o STJ e o STF não podem rever isso, já que tratam apenas de questões de direito.
E ainda que assim não fosse, são irrelevantes as reversões de condenações no STJ e no STF através do manejo de recursos especial e extraordinário.
Nos últimos 13 anos, desde a implantação do regime da repercussão geral no STF, apenas uma única absolvição foi concedida pelo Supremo a partir de recurso extraordinário interposto. O mesmo se pode dizer quanto à reversão de condenações pelo STJ através da utilização do recurso especial: insignificantes 0,62%.
Um sistema não pode funcionar de forma tão inadequada por causa de exceções. Para casos excepcionais, basta resguardar a possibilidade de obtenção de medidas cautelares no STJ e no STF e também a impetração de Habeas Corpus.
Finalizo, lembrando de Aristóteles, um dos grandes filósofos da história. Para ele Justiça era a maior das virtudes e um ato típico de meio termo, que busca se afastar dos extremos. Algo que se situa, portanto, entre a injustiça por falta e a injustiça por excesso.
A mudança aqui discutida tem o condão de evitar ambas as formas de injustiça, num país tão desigual como o nosso. Seja a que peca por falta, diante do sentimento de frustração das vítimas e de todo um país por verem acusados condenados por crimes graves que nunca cumprem pena; seja a que peca por excesso, decorrente da inesgotável possibilidade de recursos e incidentes processuais previstos para que alguns, muito poucos, privilegiados, se sintam imunes ao alcance da lei.
* Fábio George Cruz da Nóbrega, procurador regional da República e presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR)
** Artigo publicado originalmente no Estado de S.Paulo