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Nota Técnica PL 009/2016 (10 medidas Contra a Corrupção)

NOTA TÉCNICA PRESI/ANPR/JR Nº 009/2016

Proposição: PL nº 4850/2016

Ementa: Estabelece medidas contra a corrupção e demais crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento ilícito de agentes públicos.

Dispositivos: Art. 2º

Senhores Deputados,

A Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR apresenta Nota Técnica quanto ao Projeto de Lei 4.850/16, que torna crime o enriquecimento ilícito de agentes públicos.

Trata-se de esforço realizado no seio das 10 Medidas Contra a Corrupção, campanha do Ministério Público Federal que tem por finalidade a aprovação de medidas legislativas que tornem a repressão à corrupção mais efetiva. Diante disso, a ANPR irá apresentar uma série de notas técnicas, para complementar os artigos elaborados por doutrinadores, no que tange às 10 Medidas propostas. Sempre com o intuito de colaborar para que o debate seja o mais profundo e completo possível.

Na matéria de enriquecimento ilícito, a tipificação penal foi proposta no art. 2º do PL 4.850/16, propondo-se a criação do art. 312-A, consubstanciado-se o delito na prática das seguintes condutas: adquirir, vender, emprestar, alugar, receber, ceder, possuir, utilizar ou usufruir, de maneira não eventual, bens, direitos ou valores cujo valor seja incompatível com os rendimentos auferidos pelo servidor público ou pessoa a ele equiparada.

Cabe notar que no âmbito da Consultoria Legislativa do Senado Federal 1 e a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados 2 , a manifestação foi de apoio ao tipo penal proposto. Veja-se o que disse recentemente esta ultima:

“O tipo proposto não ofende a Constituição e sua amplitude está embasada na vasta experiência brasileira das várias situações encontradas de enriquecimento ilícito. Uma observação importante é a de que o PL não propõe a inversão do ônus da prova, de modo que a acusação é que tem que provar que há incompatibilidade dos bens “com os vencimentos, haveres, recebimentos ou negociações lícitas do servidor público”.

A proposta, pois, está em consonância com a Constituição, com os princípios da moralidade e da probidade administrativa e com a necessidade de transparência no que se refere ao trato com a coisa pública. Não se trata de perseguir aqueles que têm “sucesso na vida”, mas apenas de verificar casos de servidores públicos que têm aumento de patrimônio incompatível com a sua renda declarada”.

No entanto, a matéria foi objeto de algumas críticas no âmbito da doutrina, dentre elas de que a tipificação do enriquecimento ilícito: i) violaria o princípio da culpabilidade e da presunção de inocência; ii) seria injustificada, dada a inexistência de desvalor do enriquecimento ilícito em si, que é utilizado como prova indireta da corrupção e do peculato; iii) seria desnecessária, visto que suficiente a previsão do ilícito na esfera administrativa, como sanção pelo descumprimento do dever de informar a Administração Pública quanto à evolução patrimonial (ultima ratio do Direito Penal).

Apresentado o contexto, passa-se então a nossas considerações a respeito da medida proposta.

De início, pertinente observar que a criminalização do enriquecimento ilícito é obrigação a que o Brasil está vinculado internacionalmente, em razão da ratificação da Convenção Interamericana contra a Corrupção (internalizada pelo Decreto nº 44102/02) e da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto nº 5687/06). A primeira prevê expressamente que os Estados Partes adotarão as medidas necessárias para tipificar como delito em sua legislação o aumento do patrimônio de um funcionário público que exceda de modo significativo sua renda legítima. Já o segundo estimula que o Estado Parte adote as medidas legislativas e de outras índoles necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente, o enriquecimento ilícito, ou seja, o incremento significativo do patrimônio de um funcionário público relativos aos seus ingressos legítimos que não podem ser razoavelmente justificados por ele. 

São tratados celebrados pelo Brasil, ratificados e internalizados em nosso ordenamento jurídico, sendo, então, vinculantes. Há mais de 10 anos o Brasil assumiu esta obrigação internacional de criminalizar o enriquecimento ilícito. Veja-se que as convenções são bastante claras quanto à necessária tipificação em âmbito penal. E assim já procederam diversos países, como França, México, Nicarágua, Chile, Peru, Argentina, Colômbia, El Salvador, Hong Kong, China.

O tema também tem sido objeto de discussões pelos juristas da Comissão de Reforma do Código Penal, resultando em tipificação, no projeto de Novo Código Penal (PLS 236/2012), em moldes muito similares aos ora apresentados3 . Neste contexto, a atual proposta inserida nas 10 Medidas inova pela inclusão também do verbo possuir (bens e valores). Assim sendo, não se trata de assunto inovador, tampouco ousado.

Por outro lado, o enriquecimento ilícito constitui, por si só, um desvalor autônomo, algo a ser desestimulado pelo ordenamento jurídico. Tanto é assim que possui vedação tanto no Código Civil (arts. 884-886) quanto na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92) – caracterizando modalidade própria – e a mais grave – de improbidade administrativa. No entanto, mesmo a tipificação nessas searas não foi suficiente para o desestímulo do enriquecimento ilícito, uma vez que a prática não vem sendo coibida com o rigor necessário. 

Não se trata, da mera criminalização de indício de peculato ou corrupção, quando insuficientes as provas para enquadramento em tais crimes. Muito pelo contrário! Trata-se de garantir um mínimo de repercussão penal a condutas que por sua gravidade são, por si sós, mal vistas e condenáveis, em especial no âmbito da Administração Pública. Há determinadas condutas que, contextualizadas, possuem baixíssima expectativa de legitimidade, o que justifica o seu desvalor, e a opção por sua criminalização, sendo possível a tutela do bem jurídico relevante já em momento anterior.

É o caso, por exemplo, do porte de elevada quantidade de munição. A conduta em si é desprovida de lesividade imediata à segurança pública, contudo, há alta probabilidade de estar vinculada a futuras práticas ilícitas, razão pela qual já constitui crime por si só. No mesmo sentido é a aquisição de bens em valor desproporcional ao patrimônio do servidor: a conduta por si só é desprovida de expectativa de legitimidade, justificando-se a sua criminalização.

De se lembrar que no âmbito do Direito Penal vige o princípio da subsidariedade, isto é, quando previstos tipos penais diversos a tutelar o mesmo bem jurídico, via de regra, não se aplicam cumulativamente, e sim subsidiariamente: aplica-se o crime menos grave se a conduta não se enquadrar como crime mais grave. É dizer, ainda que não haja elementos para enquadramento em crime mais grave, garante-se um mínimo de punição para o enriquecimento ilícito, com a finalidade de tutelar não só o patrimônio público, mas também a moralidade no âmbito da administração pública.

Sim, pois do funcionário público nada menos se espera que a conduta proba, isto é, de acordo com as imposições legais e com a moralidade. Tanto é assim que a diversos crimes contra a Administração Pública entende a jurisprudência pela inaplicabilidade do princípio da insignificância. É o caso da prevaricação e do peculato (nesse caso, o princípio é inaplicável ainda que irrisório o valor auferido, já o que se tutela é a probidade da administração). Também na concussão e na corrupção passiva prevalece este raciocínio: a mera conduta de exigir ou solicitar vantagem já caracteriza o crime, enquanto o proveito econômico é considerado mero exaurimento.

Há, portanto, um dever do servidor público que vai além daquele exigido do cidadão comum, em razão de representar a atuação do Estado. E justamente por isso, na Lei de Improbidade Administrativa vem prescrita a obrigação de declaração de bens e valores não só como condição para posse do agente público, mas também para o seu exercício, tratando-se de declaração a ser realizada e atualizada anualmente. Já existe o dever do agente público, portanto, de declarar seus rendimentos. Instituiu-se procedimento objetivo de controle do enriquecimento ilícito. E a (ora proposta) criminalização do enriquecimento ilícito surge como consequência de tal dever, conferindo repercussão mais grave (pois constante da esfera penal, que restringe a liberdade do cidadão) àquele que o descumpre. 

Nessa mesma linha, tendo em vista que se prevêem nove núcleos verbais para o tipo do enriquecimento ilícito, tampouco subsiste a crítica de que se trataria de delito de suspeita. As condutas que implicam enriquecimento ilícito são caracterizáveis por si só – isto é – adquirir, vender, emprestar, alugar, receber, ceder, possuir, utilizar ou usufruir, de maneira não eventual, bens, direitos ou valores cujo valor seja incompatível com os rendimentos auferidos pelo servidor público ou pessoa a ele equiparada. Trata-se de condutas que caracterizam a falta de probidade do agente público, as quais, agora, pretende-se conferir também caráter penal, em consonância com as obrigações internacionalmente assumidas pelo Brasil.

Por fim, quanto ao ônus da prova, alguns esclarecimentos se fazem pertinentes. A criminalização do enriquecimento ilícito de forma nenhuma implica a inversão do ônus da prova na persecução penal. Este continua sendo do Ministério Público, que deverá comprovar tanto a realização de uma (ou mais) condutas previstas no tipo, quanto a incompatibilidade de tal conduta com os rendimentos declarados. Assim, não se impõe ônus maior à defesa. A esta incumbirá a demonstração de regularidade dos bens, rendimentos e transações efetuadas pelo acusado, como aliás já se poderia exigir inclusive em esfera tributária. Possibilita-se à defesa desconstituir a prova, demonstrando a licitude do rendimento – o que, ademais, é aplicável a qualquer crime.

Neste sentido, não há qualquer violação à presunção de inocência, nem tampouco fere o direito ao silêncio e à não autoincriminação. O acusado se defende se – e na forma que – entender mais estratégica. O silêncio não gera a presunção de culpabilidade, o que tem este efeito é a apresentação de provas pelo Ministério Público, de forma a bem caracterizar e comprovar o crime. Desse modo, o acusado não tem obrigação, mas o ônus de colaborar, assim como ocorre em qualquer imputação penal. 

Não é demais repetir: não se exige nada do investigado que já não seja sua obrigação: prestar informações verdadeiras quanto a seus bens e rendimentos, e abster-se de praticar condutas ilícitas. A única diferença é que agora – por iniciativa popular – deseja-se criminalizar o descumprimento desses deveres.

Diante de todo o exposto, pugna-se pela aprovação do projeto em comento. 

Sendo o que havia para o momento, permanecemos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se façam necessários. Recebam Vossas Excelências nossos protestos de estima e consideração.

Brasília, 05 de outubro de 2016.

Associação Nacional dos Procuradores da República

 

Confira a nota na íntegra 

 

 

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