NOTA TÉCNICA PRESI/ANPR/JR Nº 010/2016
Proposição: PL nº 4850/2016
Ementa: Estabelece medidas contra a corrupção e demais crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento ilícito de agentes públicos.
Dispositivos: Artigos 3º, 4º e 7º
Senhores Deputados,
A Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR apresenta Nota Técnica quanto ao Projeto de Lei 4850/2016, no que tange a seus artigos 3º, 4º e 7º, que alteram dispositivos do Código Penal para majorar as penas dos crimes contra a Administração Pública, suprimir a regulação específica do crime de corrupção praticado no contexto tributário da Lei nº 8.137/90, e do crime de peculato praticado por prefeito, previsto no Decreto-Lei nº 201/67, e incluem a forma mais gravosa de corrupção no rol de crimes hediondos da Lei nº 8.072/90.
O agravamento das penas (artigos 3º e 4º) e do regime dos crimes contra a Administração Pública (art. 7º), previstos no PL 4850/2016, são medidas essenciais no contexto do combate à corrupção.
Nos últimos anos houve uma crescente consciência coletiva com relação ao patrimônio público, de forma que a sociedade brasileira vem repudiando, com cada vez mais vigor, a corrupção e as práticas a ela associadas. Neste contexto inserem-se as manifestações populares que eclodiram desde 2013. A partir dessa consciência coletiva, observou-se uma série de inovações legislativas que permitiram mais instrumentos para os órgãos de controle no combate à corrupção, a exemplo da Lei Anticorrupção – Lei 12.846/13, que trouxe o acordo de leniência em âmbito administrativo, e da Lei de Organizações Criminosas – Lei 12.850/13, que trouxe a colaboração premiada em âmbito criminal.
Não obstante, tais inovações não vieram acompanhadas de melhor adequação das penas, de forma que, embora permitam a melhor identificação dos criminosos, e melhor funcionamento da investigação criminal, a regra ainda é a impunidade no que se trata dos crimes de corrupção, seja pela aplicação de penas irrisórias, seja pela ocorrência da prescrição, uma vez que esta é determinada também pela quantidade de pena aplicada. Há uma excessiva e patente desproporção entre a essencialidade do bem protegido (patrimônio público) e a gravidade dos crimes a ele relacionados.
Veja-se que os crimes que são objeto do aumento de pena proposto, têm, hoje, pena mínima de 2 anos de reclusão, o que permite, via de regra, a substituição por penas restritivas de direitos (quando aplicada pena de até 4 anos). E mais: independentemente do prejuízo causado ao dinheiro público. É dizer, ainda que sejam milhões e milhões de reais desviados, a pena máxima é a mesma: via de regra, até 4 anos, com substituição por penas restritivas de direitos.
Justamente por atingirem sujeitos passivos difusos – já que toda a coletividade é afetada – os danos provenientes dos reiterados desvios do patrimônio público são imensos e de amplo alcance: restringem o alcance do Estado nas políticas públicas de combate à miséria, agravam a precariedade da educação pública, da saúde pública, da infraestrutura necessária ao desenvolvimento da economia do país. Afetam a sociedade como um todo, portanto.
Nesse sentido a análise realizada pela Consultoria Legislativa do Senado Federal: “(...) a proposta parece acompanhar a compreensão que norteou o projeto de novo Código, ou seja, a de que os crimes que violam direitos difusos, coletivos e que atingem grandes estratos da população devam ser considerados mais graves do que aqueles que atingem um só indivíduo”1 . Também a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados manifestou apoio à medida, entendendo que “as iniciativas estão plenamente de acordo com o texto constitucional brasileiro e são proporcionais ao dano sofrido”2
É necessário considerar, ainda, um fato importante: os crimes de corrupção são praticados por detentores de cargos públicos, de cargos de poder, ou por aqueles que com a Administração Pública contratam. Muito longe de tratar-se de pessoas excluídas, ou sem acesso à educação ou a oportunidades. Por isso, tais crimes possuem contornos de enorme gravidade, e devem oferecer punições proporcionais, caso contrário a pena deixa de cumprir a sua função preventiva. No jogo de custo-benefício, atualmente, a corrupção compensa.
O art. 4º do PL, por sua vez, propõe a inserção do art. 327-A no Código Penal, prevendo a estrutura de molduras flexíveis para as penas dos crimes contra a Administração Pública, isto é, a pena é mais severa quanto maior for o prejuízo causado ao erário: pena de 7 a 15 anos de reclusão para vantagem igual ou superior a 100 (cem) salários-mínimos, pena de 10 a 18 anos de reclusão para vantagem igual ou superior a 1.000 (mil) salários-mínimos, e pena de reclusão de 12 a 25 anos para vantagem igual ou superior a 10.000 (dez mil) salários-mínimos.
A estrutura flexível ora proposta confere à corrupção a gravidade adequada. São os notórios desvios nos recursos que obstaculizam o desenvolvimento das políticas públicas mais essenciais.
Em um país em que há pessoas morando em lixões, país em que metade da população ainda não tem acesso a saneamento básico, isto é, às condições mais elementares de existência, a apropriação dos recursos públicos para interesses privados não pode ser admitida e nem mais tolerada, pois causa violação a princípio fundamental de nosso Estado Democrático de Direito, a dizer, a dignidade da pessoa humana, garantida no artigo 1º da Constituição Federal. E quanto maior o valor apropriado, maior o impacto do dano, em razão de seu caráter difuso.
A ideia das molduras flexíveis, destarte, busca atender ao princípio da proporcionalidade, conferindo penas maiores aos crimes mais graves. Veja-se que o legislador ordinário já confere ao juiz poderes de individualização da pena de acordo com características do crime no caso concreto, consoante o previsto no art. 59 do Código Penal. Este artigo traz as circunstâncias judiciais a serem sopesadas para fixação da pena-base, dentre as quais se encontram as consequências do crime. Por isso, não se trata de medida que amplia a insegurança jurídica, e sim de medida que permite a melhor adaptação ao caso concreto.
Trata-se, assim, da antecipação do juízo de proporcionalidade, que passa a ser realizado já na esfera do Poder Legislativo. Segundo Juliana Câmara, “está-se a sugerir que o Poder Legislativo assuma o protagonismo na cruzada contra a corrupção, reprimindo de forma mais severa as condutas criminosas que afetam bens jurídicos difusos e coletivos, sem subtrair do Poder Judiciário a discricionariedade de avaliar as particularidades do caso concreto para estabelecer uma pena compatível com a gravidade dos delitos praticados”3 .
Ressalte-se a manifestação favorável da Consultoria Legislativa do Senado Federal quanto à proposta, entendendo esta que “é sensato prever que um dano maior deva ser mais severamente apenado do que um menor, circunstância que legitima a elevação das penas-bases, mediante preponderância do desvalor do resultado. Cremos, outrossim, que é papel do legislador escolher os bens jurídicos que receberão maior proteção pelo Direito Penal”4 .
Veja-se que o modelo já é adotado em outros países, a exemplo dos Estados Unidos. Com efeito, o 2014 USSC Guidelines Manual (Manual de Orientações da Comissão de Penas dos Estados Unidos, vigente a partir de novembro de 2014), que orienta os juízes e tribunais estadunidenses na dosimetria das penas criminais naquele país, determina que se a vantagem auferida ou o dano ao Erário supera 5 mil dólares5 , a pena base passa a sofrer acréscimo proporcional, de acordo com a seguinte tabela :
Essa tabela impõe um acréscimo à pena base que pode variar entre 6 meses (acima de 5 mil dólares de vantagem auferida) até o máximo de 10 anos (acima de 400 milhões de dólares de vantagem auferida) de aprisionamento2, para o réu primário.
Parece ser instintivo que as condutas que representam dano maior devem ser mais severamente apenadas, não só como retribuição, mas sobretudo pelo seu caráter dissuasório.
Por essa razão é que se propõe que a proporcionalidade entre o resultado lesivo e a sanção criminal também seja aplicada aos demais crimes do colarinho branco.
Essencial, portanto, que sejam aprovados os aumentos de pena propostos para os crimes dos artigos 312 (peculato), 313-A (inserção de dados falsos em sistema de informações), 316 caput (concussão), 316 §2º (excesso de exação), 317 (corrupção passiva), e 333 (corrupção ativa), todos do Código Penal.
Diante da gravidade dos crimes relacionados à corrupção – conforme acima retratada - propõe-se, igualmente, o enquadramento destes crimes como crimes hediondos. Por assumirem a feição dos crimes mais gravosos no ordenamento brasileiro, tal enquadramento é sempre alvo de críticas, em especial alegando-se ausência de racionalidade na classificação de crimes hediondos, ausência de efeitos práticos, e discriminação contra a parcela mais carente da população.
Conforme exposto acima, contudo, a incidência de penas mais graves nos crimes contra a Administração Pública se dá justamente em razão do caráter difuso dos bens jurídicos afetados, prejudicando principalmente aqueles que mais dependem das ações estatais. Lembre-se que os agentes que cometem estes crimes têm plena consciência da ilicitude de seus atos, e, mesmo assim, a tipificação dos crimes não tem sido suficiente para inibir sua prática. É necessário, portanto, tornar os crimes contra a Administração Pública crimes de alto risco, com real perspectiva de aplicação de gravosas penas restritivas de liberdade.
O enquadramento desses crimes como crimes hediondos atinge este propósito. Reduz as causas extintivas de punibilidade, pois os crimes hediondos são insuscetíveis de graça ou anistia, conforme preconizado na Constituição Federal (art. 5º, XLIII). Torna obrigatório o início de cumprimento de pena em regime fechado (art. 2º, §1º, Lei 8.072/90). Torna mais rígidas as regras para progressão de regime e para livramento condicional6 .
Ao mesmo tempo, na forma como proposta, a tipificação dos crimes contra a Administração Pública como crimes hediondos obsta a principal crítica usualmente realizada aos crimes hediondos, isto é, a da seletividade do sistema penal, que trata com maior gravidade a população mais pobre, reproduzindo o modelo de marginalização e exclusão social. Nesse caso, justamente o contrário: são classificados como hediondos os crimes de peculato, inserção de dados falsos em sistemas de informações, concussão, excesso de exação qualificada pela apropriação, corrupção passiva e corrupção ativa, quando a vantagem ou prejuízo for igual ou superior a cem salários-mínimos. É como explica Juliana de Azevedo Câmara:
“As próprias críticas dirigidas à Lei n. 8.072/90 findam por reforçar o liame entre a corrupção e a hediondez. É que, ao censurar a lei de crimes hediondos, a doutrina associa-o ao movimento da lei e ordem para asseverar que essa conformação legislativa finda por criminalizar pessoas que já são marginalizadas, pois são estas que, em suas maioria, são elevadas pelas circunstâncias sociais a cometerem pequenos delitos. Sucede que, quando se pensa no crime de corrupção, a equação se inverte: são integrantes do topo da pirâmide social que figuram como algozes, enquanto os indivíduos menos favorecidos aparecem como vítimas, já que são tolhidos do Estado os recursos financeiros destinados a implementar as políticas públicas necessárias ao encurtamento das desigualdades sociais”7 .
É como entende também a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, que entende apropriada a diferenciação da pequena e da grande corrupção8 . Assim, a crítica neste sentido formulada pela Consultoria Legislativa do Senado Federal9 , não prospera.
Em seu conjunto, as medidas ora propostas trazem e atendem justamente à proporcionalidade, no que tange aos crimes contra a Administração Pública, ao lhes conferir o devido valor negativo que já é exigido pela consciência de nossa sociedade.
Diante de todo o exposto, pugna-se pela aprovação dos artigos 3º, 4º e 7º do projeto em comento.
Sendo o que havia para o momento, permanecemos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se façam necessários. Recebam Vossas Excelências nossos protestos de estima e consideração.
Brasília, 05 de outubro de 2016.
Associação Nacional dos Procuradores da República