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Marco temporal: a luta do povo Pankararu pelo direito à terra

Na quinta entrevista da série com lideranças indígenas abordando aspectos e possíveis consequências de julgamentos e legislações em curso, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) conversou com Cristiane Julião, do povo Pankararu.

Entre os assuntos, o marco temporal e a tramitação do Projeto de Lei nº 490/2007, na Câmara dos Deputados. Ambas as matérias impactam diretamente os povos indígenas. Entidades ligadas à defesa dos direitos indígenas defendem que o “marco temporal” é inconstitucional, uma vez que os povos originários têm direito à terra como uma questão de justiça social. As entidades entendem que a rejeição à tese do marco temporal dará início a uma reparação histórica e necessária frente ao nosso passado colonial. A ANPR publicou nota pública sobre o tema (Disponível aqui).

O STF deve julgar nesta quarta-feira (25) a Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 1.017.365 (SC), que trata da tese que nega o direito de povos indígenas à terra, ao determinar que só teriam direito a reivindicá-las os povos originários que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, ou que estivessem em disputa judicial ou conflito direto com invasores. Da mesma forma, as entidades apontam inconstitucionalidade do PL 490/2007 que representa forte ameaça para a existência dos povos indígenas.

- Fale um pouco sobre você e sobre o seu povo.
- Sou graduada em Geografia, mestre e doutoranda em Antropologia Social. O que me levou a esse caminho foi a minha curiosidade, minha angústia, meu desejo de aprender sobre direitos processuais, ambientais, fundamentais e internacionais. A Antropologia tem me ajudado a encontrar as respostas que eu busco nessa perspectiva. Faço parte de algumas organizações indígenas como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Polini e a Amiga, que é a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, onde estamos preparando a segunda marcha das mulheres indígenas do mundo.

- Há quanto tempo vocês lutam por seus territórios?
- A história do meu povo é muito antiga. Os documentos apontam que os primeiros contatos com o meu povo se deram em meados do século 16, por volta de 1567, 1570, na segunda metade do século. Tempos depois, capuchinhos e jesuítas vieram ao encontro e começaram a fundar a vila de Tacaratu desde o ano de 1700. Tacaratu cresce em cima do território de Pankararu. Aí começa um processo de luta, resistência e existência pelo nosso território. De não perder nossos bens e recursos naturais. Do processo de catequização, de escravização e dominação de tutela. Quando falamos assim, parece vitimismo. Aconteceu com todos os povos indígenas, esse processo de dominação, de genocídio, extermínio. Pankararu, por ter e por ser essa temporalidade de contato, passou por tudo isso e vem passando até hoje. E agora nosso genocídio simbólico, no sentido de dizer que não somos mais quem somos, somos reinventados. A luta começou dessa forma. Tempos depois desse processo de morte, catequização, Dom Pedro esteve aqui conhecendo o percurso do Rio São Francisco, da Bacia do Rio São Francisco e quando se deparou com esse grupo, disse que doaria as terras indígenas em 4 léguas em quadra. Só que o documento veio uma légua em quadra, isso em meados do século XIX. Passado esse tempo, o território não veio para nós. Já no século XX, em 1930, um pesquisador e estudioso chamado Carlos de Oliveira veio fazer um trabalho sobre a Companhia Industrial do São Francisco, se deparou com esses remanescentes indígenas e começou a pesquisar sobre o grupo e produziu um texto chamado o ossuário da "Gruta-do-Padre". Esse documento vai para o SPI, que chega ao meu território e começa um processo judicial pelo reconhecimento do território Pankararu, que durou de 1940 a 2018. Hoje, temos a posse, mas não o direito de usar o espaço. As ameaças ainda são constantes dos posseiros não indígenas. Pisamos em casca de ovos, muito cuidado para sair de casa, com muito cuidado de sair de casa, principalmente as lideranças.

- O que significa o marco temporal?
- O reconhecimento que o estado deveria ter sobre a dívida territorial com relação aos povos indígenas. Em 22 de abril de 1500, Pedro Álvares Cabral aporta com 13 caravelas em terras tupiniquins e encontra várias civilizações. O fato desse atrito e dessa tentativa constante de nos exterminar não faz com que o invasor se torne proprietário. A não ser por roubo. Se fosse no processo penal de hoje em dia, seria caracterizado como latrocínio, roubo seguido de morte. O marco temporal deveria ser isso. Mas a ideia que têm tentado sustentar, que é a partir de 1988, só prova que quem está com essa ideia jamais leu o processo legal de nada. A ideia de marco temporal tem a ver com o que foi insinuado no reconhecimento da Raposa Serra do Sol que não só trazia a questão do marco temporal, mas também repercussão geral. Que é algo que ocorre desde a primeira legislação em 1511, talvez não a ideia da legalização, mas induzindo que poderia sim acontecer em outros lugares e outros espaços dos povos indígenas, apesar de não ser nada pontual. Dois enganos que aconteceram foi na Lei de Terras e na Raposa Serra do Sol. O marco temporal deveria fazer o papel de reconhecimento e regularizar as terras indígenas. Outro ponto também é o Estatuto do Índio que, em 1973, já se falava que em cinco anos se reconheceriam todos os territórios indígenas, o que não foi feito. Tanto é que nos anos de 1990, João Pacheco de Oliveira e Alfredo Wagner fizeram um estudo muito detalhado sobre a questão territorial, as divergências, as discrepâncias de dados com relação aos territórios e até hoje estamos assim. Em 1988 traz novamente essa premissa e não se efetiva. Então, deveria acontecer esse reconhecimento, não pontuar 1988 porque é contraditório, pois se estamos falando de povos originários, como ela começaria em 1988?

- Qual a sua expectativa sobre o julgamento?
- Se realmente quando eles usam aquela toga, vêm com o propósito de fazer Justiça, que se faça Justiça. Que se reconheça o território indígena dos povos e que extermine de uma vez por todas, essa ideia de marco temporal, de repercussão geral porque não corrobora com nenhum procedimento legal mesmo que pegue todos esses procedimentos legais, revogue e refaça, ainda sim, passa a ser violação de muitos direitos, não apenas territoriais e fundamentais, mas direitos humanos e ambientais. Não é simplesmente dizer sim ou não para a terra indígena, mas é reconhecer essa dívida, o sofrimento de um povo e tentar amenizar sua história de luta, de dor e muito sangue que não se compara e nem se diminui diante de outras histórias. Espero que o STF use sua consciência de um homem a serviço da justiça e se faça justiça.

- O que os aliados e parceiros dos povos indígenas podem fazer?
- Podem dar visibilidade a essa luta, com caráter de luta. Algumas pessoas têm passado essas histórias com olhar de pesar, que diverge do nosso propósito que é buscar resistência. Claro, buscando sensibilizar, mas não pela pena, mas no sentido de botar a mão na consciência e ver o que está acontecendo com os povos indígenas. E o que nos acontece vai acontecer, já está acontecendo com quem não está dentro desse espaço. Com quem não está dentro dessa realidade. Porque todas as violações e violências contra os nossos corpos, contra os nossos territórios também acontecem em larga medida com outros segmentos sociais. Claro, com especificidades, mas acontece. Violação de direitos sociais, violência física e doméstica, violação na segurança. Falta alimento, falta solo produtivo, falta alimento. Então, estamos passando pelos mesmos problemas. Com os parceiros, buscamos dar eco a esse grito e que precisamos estar juntos, porque reconhecer um território indígena é reconhecer e lutar pela sua própria existência e a de futuras gerações que estão ao seu redor, as pessoas que cultivam e que têm esse afeto, para que tenhamos pés de frutas, de hortaliças, mas para todos. Não só para nós. Esse cuidado com a terra e com os recursos naturais não é só para nós, mas para todos. Os parceiros podem vir com a gente e dar eco, respeitando as especificidades de cada povo, porque a ideia é caminharmos lado a lado, não na frente do outro.

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